ESCOLA SEM PARTIDO: UMA ILUSÃO
Por Daniel Munduruku
Tenho lido bastante coisa sobre uma
certa escola sem partido, proposta feita por um grupo de deseducadores
nacionais.
Fiquei pensando muito compenetradamente
sobre o tema e achei por bem dar minha versão sobre o grupo que propõe tão
descarado projeto.
A escola sem partido já existiu no
Brasil. Ela começou em 1964 quando por aqui foi engendrado um golpe militar.
Nessa ocasião, os direitos dos cidadãos foram cassados pela ideia de que era
preciso construir uma pátria voltada para os princípios da moral e do civismo.
Todos os brasileiros deveriam aprender a honrar sua pátria e sua família.
Professores não podiam falar de revoluções com o risco de serem considerados
inimigos da verdade que nasce com os princípios morais. Todos deveriam pensar
do mesmo jeito e ponto final.
Eu, filho da floresta, fui vítima dessa
ideologia que não se queria ideologia porque defendia uma pátria sem ideologia.
Levado para a escola me impuseram uma língua única; o aprendizado de
disciplinas universais; a necessidade de falar uma língua estrangeira; bater
continência à bandeira sem me explicar o que isso significava; uma profissão
que me dignificava como cidadão. Eu fazia parte de uma “nação que vai pra frente, um povo unido de grande valor”. E o mais
interessante: eu era feliz por causa disso. Por isso eu marchava no dia 7 de
setembro; cantava o hino nacional com orgulho; dedicava-me ao exercício de ser
“um brasileiro autêntico”.
Meus professores me ensinavam coisas
muito práticas que me conduziam para um bem estar social. Aprender português ou
matemática era apenas um passo para ser completamente feliz. Pensar era um luxo
desnecessário.
Por incrível que pareça eu estudei numa
escola religiosa desde a mais tenra idade. Era uma escola que primava pelo fato
de ensinar às crianças e jovens uma profissão que os tornariam “indigentes” do
sistema. Acontece que esta mesma escola que me alienava, aceitando a generosa oferta
do Estado, também me ofereceu um olhar crítico sobre o mundo.
Confesso que naquela ocasião eu nunca
ouvira falar de Caetano, Chico ou Gil. Eu ouvia músicas religiosas que
enlevavam meu espírito à porta do paraíso e nada mais. Passei os primeiros
quinze anos de minha vida sem saber que a merenda que eu comia na escola era
fruto de falcatruas engendradas no coração do sistema que me pedia cidadania
plena. Eu era massa de manobra. Mas eu não sabia disso.
Foi a mesma igreja que me alienou
deu-me um olhar crítico sobre o mundo. Era prática à época achar meios de
driblar a censura. Foi ela que me ofereceu as canções de Geraldo Vandré (pra
não dizer que não falei das flores); Jair Rodrigues (cavalgada); Belchior (Como
nossos pais); Cálice (Chico Buarque), entre outras. Não me apresentaram Marx ou
Che Guevara; não falaram para mim de Gramsci ou Paulo Freire. Disseram-me sobre
um certo Jesus, revolucionário que curava as pessoas, dava comida aos pobres,
questionava a riqueza dos ricos, vivia no meio de prostitutas e mendigos; não
tinha nojo das feridas sociais e convivia pacificamente com aqueles que
cobravam impostos. Foi este revolucionário que me chamou atenção. Os demais, só
viria conhecer anos depois quando já frequentava os bancos da universidade que fazia
questão de lembrar que eu era um zé ninguém e que ali não era meu lugar.
Eu cresci um homem de esquerda. O
acesso à universidade quebrou um destino que já estava traçado para mim: eu
seria um ninguém com carteira de trabalho assinada. Seria a massa de manobra
que o Estado brasileiro desejava. Seria o funcionário padrão tão desejado pelas
corporações alimentadas pela ideia da ideologia única. Tudo estava devidamente
escrita no script do filme de minha vida.
Tudo estava certo. Eu, no entanto,
quebrei o escrito. Por força da crença no tal revolucionário Jesus eu saí
daquilo que era considerado meu destino. Comecei a ter acesso a livros que
falavam sobre possibilidades de sermos fraternos de verdade, que não era justo
meia dúzia ter toda riqueza enquanto milhões passavam fome; não era possível
ficar assistindo os comerciais de margarina, onde as pessoas são sempre
felizes, enquanto houvesse pessoas na penúria. Que uma sociedade multiétnica
pudesse ser comandada por uma elite branca. Não foi Karl Marx que me disse
isso; não foi seu “livro vermelho”, mas um certo livro de cabeceira que reunia
a história de muitos povos em diferentes épocas. Tempos depois descobri que tal
livro se chamava Bíblia Sagrada.
Hoje fico pasmo quando alguém defende a
tal escola sem partido como se isso fosse uma novidade contra a invasão marxista.
É simplesmente o jeito de defender a volta da ideologia militar dos anos 1970
porque se trata de perseguir pessoas que pensam diferentes; se trata de evitar
que pobres tenham acesso ao sistema de ensino que os empodera; se trata de
continuar a dividir as populações indígenas oferecendo a elas a figura do “capitão”
em detrimento da autoridade do “cacique”. Em resumo, trata-se da infeliz ideia
de tornar a todos nós massa de manobra de uma elite que não aceita dividir o
poder, não admite a ideia da democracia como partilha de direitos.
Será que as pessoas não veem isso como
um retrocesso? Será mesmo que todos pensem que as doutrinas de esquerdas são macabras?
Será que todo mundo acha que o mundo todo é estúpido? Tá certo que o comunismo não
deu certo, mas o pensamento dialético está presente em nossa leitura de mundo. O
capitalismo não nos oferece o contraditório; quem faz isso é a lei baseada nos princípios
universais dos direitos humanos, fruto de uma luta mundial; o fim da escravidão
não foi apenas uma benesse do Estado Brasileiro, mas fruto das revoltas
populares nascidas da consciência dos direitos; a demarcação das terras
indígenas não é caridade, mas direito conquistado. Será que é disso que estamos
falando?
Por fim, penso nos parentes indígenas
que defendem com unhas e dentes a FUNAI. Penso que as pessoas mais conscientes
sabem da importância desse órgão para as populações indígenas, mas sabem também
que é preciso avançar. Normalmente quem a defende são aqueles que estão atrelados
a um esquema de privilégios. No meu ponto de vista, pensar na manutenção da
instituição tal qual ela se encontra só é compreensível se imaginarmos que ela
é a reprodução da tal escola sem partido. A FUNAI é alienante. Ela nunca serviu
para conscientizar as populações sobre seus direitos porque este não é o papel
do Estado que ela representa. A FUNAI não liberta. Ela aprisiona. A escola sem
partido, também. É uma ilusão. As duas.
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