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Povos indígenas no Brasil e a sua literatura

Matéria publicada em 15/04/2013 - http://www.univesp.ensinosuperior.sp.gov.br/preunivesp/4817/povos-ind-genas-no-brasil-e-a-sua-literatura.html

A escrita foi um instrumento importante para que uma nova visão sobre os indígenas fosse despertada na sociedade brasileira

Por Daniel Munduruku*
Povos indígenas no Brasil e a sua literatura
Mor
Há no Brasil uma grande diversidade de povos nativos. Segundos os estudiosos, no século XVI – quando os europeus chegaram por aqui – havia mais de mil povos diferentes e eram faladas cerca de novecentas línguas. Nós aprendemos, no entanto, que aqui existiam apenas “índios”. Aprendemos errado. Não nos ensinaram que cada povo é diferente, mesmo que tenham coisas parecidas, mesmo que sejam parecidos fisicamente, mesmo que tenham hábitos de vida que se pareçam. Aconteceu, assim, que acabamos acreditando que “todos os índios são iguais” e, junto com essa crença, vieram as ideias pejorativas e equivocadas sobre os nativos: que eles são preguiçosos, selvagens, atrasados, perigosos, traiçoeiros etc.
Durante toda história do Brasil, a figura do “índio” sempre foi diminuída. Algumas vezes, ele era apresentado como sinônimo de atraso cultural; outras, como selvagem, que atrapalhava o desenvolvimento econômico. Chegou a ser utilizado como mão de obra escrava e também foi retratado na literatura como um ser que vivia num paradisíaco “estado de natureza”, ou seja, mais próximo do natural. A isso chamamos de visão romântica, que até nossos dias muitas pessoas têm. Esse tipo de olhar sobre estes povos acabou direcionando as pessoas para uma compreensão equivocada sobre os indígenas: ou você é “índio” e vive como antigamente (na mata, pelado, caçando ou pescando, andando de canoa, vendo as horas passarem olhando o céu), ou você se integra à sociedade dita civilizada e deixa de ser “índio”. Para quem pensa desse modo, quando algum indígena estuda ou se destaca em algum setor da vida urbana (literatura, cinema, música, meio ambiente) ele logo é taxado de “civilizado”.
Pode parecer estranha essa afirmação, mas ainda é comum nos dias de hoje as pessoas pensarem que, ao usufruir dos recursos das cidades, os indígenas – e não simplesmente índios – deixam de ser o que são e passam a ser o que não são. Estranho, não? Mas é verdade.
Isso revela uma triste realidade: o Brasil não conhece seus povos indígenas. Não sabe que há um processo humano que acontece em todas as culturas e que faz com que elas se transformem, mudem e se adaptem aos novos tempos. Se isso não acontecer, a cultura desaparece e aí é o fim de uma história que foi construída ao longo de muitos milênios – e isso não é justo. Claro que muitas culturas desapareceram vítimas da violência dos colonizadores, dizimadas por doenças que não conheciam, ou por conta da escravização a que foram submetidas. Algumas tiveram que se esconder, se misturando nas cidades que surgiam. Isso aconteceu especialmente no Nordeste brasileiro, região que primeiro sofreu o impacto da colonização. Os povos que quiseram se manter vivos tiveram que se misturar e “fingir” que tinham mudado sua cultura e aceitado a cultura urbana. Hoje em dia, quando vemos um indígena nordestino e esquecemos sua história, logo imaginamos que ele não é mais “índio”. É um erro pensar assim, pois não se leva em consideração a história vivida pelos antepassados dessa pessoa.
O que temos no Brasil de hoje é uma diversidade de culturas indígenas que vêm resistindo bravamente ao processo histórico. São mais de 250 povos – e não tribos – espalhados por todas as regiões brasileiras. São grupos humanos que dependem daquilo que a natureza lhes oferece para sua sobrevivência. Nem todos estão na Amazônia, como às vezes as pessoas acreditam. Estão vivendo em todos os biomas brasileiros (Amazônia, Cerrado, Mata Atlântica, Caatinga, Pampa e Cerrado) e falam cerca de 180 línguas e dialetos. Algumas dessas línguas fazem parte de um mesmo tronco linguístico e podem ser mutuamente entendidas. Outras são muito diferentes e quase ninguém as entende e por isso são chamadas de línguas isoladas. Também se acredita que há aproximadamente 60 grupos indígenas que nunca tiveram contato com o povo da cidade. 
São povos que procuram atualizar suas culturas para continuarem vivos, utilizando as novas tecnologias. Com elas podem mostrar como e onde vivem, qual o tamanho das suas terras. Também denunciam o descaso do poder público, a invasão de seus territórios, a destruição da natureza. Fazem isso usando a internet, os celulares, as câmeras de vídeos e a literatura, que é o que mais nos interessa nessa conversa.
Literatura como instrumento de conscientização
É sabido que os povos indígenas nunca criaram uma escrita elaborada, por exemplo, com um alfabeto, como na língua portuguesa. Não inventaram porque não precisavam, e não por falta de criatividade ou de inteligência: o sistema de transmissão oral simplesmente lhes parecia suficiente para viverem bem. No entanto, ao serem obrigados a conviver com a sociedade dita letrada – que tem na escrita um importante instrumento de transmissão cultural –, tiveram que dominar essa técnica, frequentando a escola formal para isso. 
Alguns foram adiante e frequentaram cursos superiores – há inclusive os que são pós-graduados e atuam como professores universitários. Enfim, aprender a escrever e utilizar a escrita como instrumento de conscientização foi um passo importante para que estes povos passassem a influenciar a sociedade brasileira, no sentido de dar um novo olhar sobre a diversidade indígena, sua riqueza e sua magia. A literatura é um dos meios de fazer isso. Os indígenas contam histórias que ouviram antigamente, criam romances, aventuras, poesia. Estes textos falam do tempo dos antepassados, mas falam também do presente, da saudade de casa, dos amigos. Contam aventuras vividas, ouvidas ou lidas; revelam sabedorias antigas; ensinam fórmulas de remédios ou receitas de alimento. Enfim, são leituras que podem revelar um lado pouco conhecido de nossa gente nativa, e, ao mesmo tempo, são fundamentais para que se possa compreender, aceitar e respeitar o que pode lhe parecer diferente. Na verdade, o que você irá encontrar é apenas outro jeito de ser humano.
Para quem quiser conhecer essa literatura, existem mais de 30 autores indígenas com livros publicados. Alguns deles são: 
Yaguarê Yamã – povo Maraguá – Amazônia – 17 livros
Olívio Jekupe – Povo Guarani – São Paulo – 12 livros
Roni Wasiry Guará – Povo Maraguá – Amazônia – 05 livros
Graça Graúna – Povo Potiguara – Rio Grande do Norte – 05 livros
Eliane Potiguara – Povo Potiguara – Pernambuco – 05 livros
Cristino Wapichana – Povo Wapichana – Roraima – 03 livros

*Daniel Munduruku é diretor-presidente do Inbrapi, Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual. É filósofo e pós-doutorando em literatura na Universidade Federal de São Carlos. É escritor com obras voltadas para a divulgação do pensamento indígena. Foi um dos coordenadores do curso de Magistério Indígena do Estado de São Paulo.

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