VOYEUR
Ela abre a porta de maneira tão vulgar que o
deixa sempre atônito.
- Vulgar – ela pergunta – o que quer dizer
com isso? Vulgar é a puta-que-o-pariu. Nada há de vulgar no meu ato de abrir a
porta!

Preferia que ela não fosse vulgar ao abrir a
porta. Preferia que ela fosse refinada, final, gentil. Abrir com leveza e finesse como faziam as madames da televisão.
Como fazia a dama Fernanda Montenegro. Aquela sabe envelhecer com brio! Sabe
ser uma dama! Sabe abrir uma porta com primor!
Faz tempo que a observa. Ela nem sabe disso.
Virou um voyeur de sua própria
mulher. A espia quando dorme após longo dia de trabalho. Sente sua respiração,
dividindo o ar entre as narinas e a boca, vez ou outra solta um gemido.
- Pensou em mim – ele pensa iludido.
Outras vezes abre a porta do banheiro sem que
ela perceba. Dentro do box ela se ensaboa sem notar que está sendo observada.
Seus olhos fechados confessam seus pensamentos enquanto suas mãos percorrem o
corpo molhado. Quando abre os olhos se depara com os dele pousados no corpo
branco e desnudo.
Ele já a ficou espiando enquanto lava louças
ou roupas na área de serviços. Acha que é uma visão do paraíso olhá-la assim,
sem ser visto. Pensa que o que vê é seu: a pele branca, a bunda levemente
arrebitada enquanto se curva sobre a máquina de lavar. A concupiscência de seu
desejo quer tocá-la com sofreguidão. Nem sempre resiste. Ela sempre manda que
pare. Ele sabe que não é verdade. Ela gosta. Faz-se apenas de difícil para não
dar o braço a torcer. Ela finge não ter concupiscência. Ele nunca soube porquê.
Ele gosta de vê-la trabalhando sobre a mesa
da cozinha. Espalha todo o material. Diz que é para ter uma visão de conjunto.
Ele ri. Conhece-a.
Faz tempo que ele a engana. Faz tempo que ela
sabe. Ela o prende. Grilhões impostos por doses de afetos perdidos. Bolas de
ferro invisíveis amarrados a seus pés. Ele é voyeur; ela, senhora da senzala. Ele espia querendo encontrar-se
nela; ela o amarra com seu cântico dos cânticos; ele, preso por vontade
própria; ela, livre; ele pássaro; ela, linda; ele, só.
Então, por que? Porque tem que ser tão vulgar
ao abrir a maldita porta?
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