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O tempo da leitura e a leitura do tempo


(Texto apresentado em Bogotá, Colômbia, em 08 de outubro de 2007, por ocasião do Congresso de Literatura Brasil - Colômbia.)

Em primeiro lugar gostaria de cumprimentar a todos os presentes na língua de meu povo Munduruku. É um cumprimento que se faz sempre que a gente chega a um lugar para uma visita, para contar histórias ou trazer noticias de outros lugares. É uma forma de dizer que um encontro verdadeiro é aquele em que a gente sempre sai melhor, mais forte, mas sábio, mais humano.
Meu povo munduruku está presente em três estados brasileiros: Amazonas – onde aconteceu o primeiro contato com a sociedade brasileira; no Pará – onde os munduruku tiveram uma importante atuação na história local e onde nasci e cresci; e no Mato Grosso – para onde migraram algumas famílias na década de 1980.
Este povo tem, portanto, uma relação antiga com a sociedade nacional tendo que adaptar-se em seu ser cultural para continuar vivo. Esta adaptação foi feita sobretudo no que se refere à necessidade de incluir hábitos que antes não faziam parte do seu cotidiano como vestir roupas ou consumir alimentos estranhos à sua dieta alimentar. Teve também que aprender a língua portuguesa para comunicar-se e ir à escola para conhecer os valores ocidentais. Claro que não se tratou de uma passagem tranqüila e nem isso fez com que esse povo deixasse suas principais características culturais como os rituais, as tradicionais pinturas corporais, a língua e outros elementos que o tornam particular no cenário da sociodiversidade brasileira.
É do lugar de membro desse povo que lhes desejo falar. Sou um indígena, um nativo, um Munduruku. Dentro deste povo nasci e nele aprendi os elementos principais da nossa cultura: aprendi a ouvir, falar apenas o essencial, fazer o silêncio que vem de dentro, imprescindível para viver em paz comigo mesmo e com as pessoas que me cercam. Aprendi as lições da floresta, dos rios e de todos os seres que habitam nosso mundo mítico e milenar.
Mas também fui “vítima” do sistema ocidental de ensino e com ele aprendi a manipular a memória através da escrita tornando-me, assim, um relator da memória oral da gente indígena que, no dizer do ocidente, faz de mim um escritor. Meu amigo Ailton Krenak prefere me chamar de Escrevinhador das memórias, título que muito me honra.
Tenho a alegria de estar aqui hoje para falar sobre a literatura de autoria indígena que se faz hoje no Brasil numa profunda contradição entre oralidade e escrita. No entanto, não é possível falar da literatura quando ela é feita por pessoas de tradição ágrafa sem apresentá-las antes para que se entenda o grau de dificuldade que temos nas relações com as sociedades complexas que têm, nas letras, seu principal ponto de convergência humana. Isso, às vezes, faz com que estas mesmas sociedades tenham necessidade de dar tempo à leitura e se esquecem de fazer a leitura do tempo rejeitando, por isso, as outras formas de leitura e escrita produzidas, desde muitos séculos, pelas sociedades tradicionais.
Certamente é já do conhecimento de todos que o Brasil possui uma sociodiversidade muito grande. É um povo marcadamente mestiçado num processo que envolveu os europeus, africanos e povos originários da terra, que equivocadamente são chamados de índios, termo genérico reproduzido pela escola com sinônimos diversos: atrasado, feios, preguiçosos, selvagens, canibais, infantis para dizer apenas alguns. Este tipo de tratamento esconde, desde muito tempo, a verdade sobre a riqueza que nossos povos possuem dentro do seu contexto sociobiodiverso.
O que temos hoje no Brasil é uma diversidade cultural e lingüística que surpreende o mundo todo: somos aproximadamente 230 diferentes povos e falamos 180 línguas divididas entre troncos, línguas, dialetos tão distintos entre si que é quase impossível conhecê-los todos. Tal diversidade faz tornar-se ridícula e perigosa a generalização utilizada ainda hoje.
Estas sociedades – que experimentam diferentes formas de humanidade – têm diferentes relações com a sociedade brasileira. Algumas delas têm 500 anos de contato; outras, 300, 200 anos; outras têm apenas 40 ou 50 anos e acredita-se que existem outras 50 comunidades que não possuem contato algum com a sociedade nacional. São pequenos grupos que fogem ao encontro que sabem ser muito nocivo para sua própria cultura.
Neste quadro e com estas diferentes situações, povos indígenas inteiros têm sofrido as conseqüências de viverem em contato permanente com uma sociedade que lhes mantêm escravas de um conceito que os torna menores, infantis e marginalizados. A isso se inclui a negação da identidade cultural. Se por um lado manter-se indígena é condição fundamental para o reconhecimento étnico – pois assim a sociedade complexa pode manipulá-lo – o aprender e conviver com a sociedade nacional em igual condição é considerado um abandono da identidade. Em outras palavras: se vou para a universidade e compreendo a lógica do ocidente acabo sendo desqualificado como pertencente a uma sociedade indígena. Ser indígena, na cínica lógica do ocidente, é manter-se “no atraso cultural”; ao pertencer ao mundo global perco minha identidade étnica. Essa forma de pensar tem ocasionado sérias crises de identidade no meio indígena. Jovens, levados a pensar que o melhor é negar a identidade e assumir a identidade ocidental, acabam aprendendo, de forma dolorida, que ao fazer isso também não são aceitos pelos outros. A conseqüência disso tem sido o sofrimento, a dor, o suicídio.
É claro, no entanto, que em nenhum momento estas sociedades deixaram de resistir e lutar pelo que consideravam importante para a manutenção de suas culturas tradicionais. E mesmo tendo sido imposto um modelo de sociedade ao qual deveriam abraçar para tornarem-se mais humanos – no pensar do ocidente capitalista – estes povos não desistiram de sonhar um encontro em que pudessem mostrar toda sua riqueza humana. Neste sentido, o surgimento do movimento indígena organizado na década de 1980, foi fundamental para mudar a forma de relação com a sociedade brasileira. Naquela ocasião, jovens que foram mandados por suas comunidades para estudarem nas cidades iniciaram um movimento que culminaria no estabelecimento de um novo paradigma com o governo brasileiro.
No inicio de tudo estes jovens lutavam por coisas muito práticas: demarcação das terras habitadas imemorialmente pelos povos indígenas; assistência à saúde; educação diferenciada que levassem em consideração as diferenças étnicas; desenvolvimento de projetos de economia alternativa, sobretudo para aquelas comunidades com maior tempo de exposição à sociedade envolvente e que já não dominavam mais a técnica tradicional de economia.
Mais tarde e com uma nova geração de lideranças, houve uma preocupação na formação de técnicos indígenas e formação universitária o que vem ocorrendo até os dias de hoje. Neste ínterim, foram surgindo os primeiros ensaios de uma literatura eminentemente indígena. Isso se deu justamente pela constatação de que os indígenas, apesar de todo o avanço político que haviam conquistado, não conseguiam falar por si mesmos. Eram sempre representados por estudiosos, antropólogos, cientistas. Esses parceiros acabavam por assumir um papel de paladinos dos direitos indígenas, mas acabavam por tornarem-se uma barreira para o aparecimento de vozes nativas na literatura.
Verdadeiramente os escritos autorais indígenas vêm aparecer apenas na década de 1990. Surgem de forma tímida, mas vão ganhando forças na medida em que a sociedade brasileira vai se abrindo para receber a memória escrita de nossa gente. Esta abertura vai acontecer mais efetivamente a partir do ano 2000 com o crescimento da demanda por textos de autoria indígena principalmente em função da atuação no movimento indígena de pessoas que tinham maior compromisso com a memória escrita. Livros que foram premiados no Brasil e no exterior também foram importantes para que o mercado livreiro visse nesse nicho um potencial econômico favorável o que ajudou a expandir esta mesma literatura.
Minha atuação na área da literatura é relativamente recente. É verdade que lancei meu primeiro livro em 1996 e que ele teve uma repercussão bastante surpreendente, sobretudo nas escolas. Foi o primeiro livro lançado por um indígena endereçado para o público das escolas brasileiras.
Em 2003 o livro “Meu Vô Apolinário – um mergulho no rio da (minha) memória”, recebeu da Unesco uma indicação no Prêmio de Tolerância que ela mantinha. Isso colocou a literatura na mídia e fez com que novos autores indígenas também começassem seu caminho nesta seara.
Em 2003 ajudei a criar o INBRAPI – Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual – uma organização que tem como objetivo a proteção dos conhecimentos ancestrais de nossos povos. Isso fez com que quiséssemos pensar a respeito dos direitos autorais coletivos e, ao mesmo tempo, questionar o uso indevido das histórias tradicionais pela academia e pela literatura. Foi assim que, contando com a parceria sempre muito qualificada da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil – FNLIJ – decidimos organizar o primeiro encontro de escritores indígenas e lançar dois concursos que ajudariam a divulgar a literatura escrita pelos indígenas e a descobrir novos autores nas comunidades tradicionais.
Para este primeiro encontro – com o aporte financeiro da Fundação Ford - conseguimos reunir, no contexto do salão do livro infantil e juvenil – que acontece anualmente no Rio de Janeiro e organizado pela FNLIJ – 12 escritores indígenas entre os mais de 30 que foram identificados num levantamento inicial.
Como resultado deste encontro foi escrita “A carta da Kari-oka” em que os presentes expunham, pela primeira vez na história do Brasil, uma posição clara e objetiva sobre o que pensam as sociedades indígenas a respeito dos direitos autorais chamando a atenção dos escritores e editores para a necessidade de usar o conhecimento tradicional de forma correta e com a devida repartição de benefícios. Ou seja: não se podem recontar histórias tradicionais sem o devido crédito aos verdadeiros donos delas.
Depois deste encontro, que foi um verdadeiro sucesso, outros foram acontecendo ano a ano com avanços significativos na qualidade dos textos e dos projetos gráficos. O resultado disso tem sido cada vez mais gratificante por notarmos que já há um reconhecimento de uma autentica literatura indígena brasileira e a participação crescente de autores indígenas em eventos literários pelo Brasil e exterior.
No entanto, questões ainda surgem como contrapontos na mesma proporção que surgem trabalhos acadêmicos. Há quem diga que os indígenas não fazem literatura. Há quem diga que o acesso à cultura letrada torna os indígenas menos indígenas. Há quem fale que tudo não passa de um surto e que depois cairá no esquecimento.
Pode ser. Confesso, no entanto, que isso não me preocupa. Não fui eu quem criou os conceitos classificatórios para o que os indígenas escrevem. De minha parte sequer acho que fazemos literatura. Já disse neste mesmo texto que fazemos memória escrita. Contamos nossa vida, nossa experiência, nossas histórias relatadas pelos velhos. Colocamos nela sonhos e crenças que cultivamos como verdade que nos é oferecida pelos nossos ancestrais.
Também acho que lançamos um instrumental para questionar a sociedade da tecnologia e do egoísmo. Oferecemos uma alternativa de leitura do mundo e do tempo e da experiência de estar vivos. Alertamos para a necessidade da memória na construção da identidade. Enfim, questionamos a sociedade onde prevalece o esquecimento e a cínica crença de que o individuo está acima de tudo, pode tudo, até destruir o mundo que ele não fez.
Escrevemos para contar o que sabemos e não para esvaziar a oralidade.
Escrevemos aquilo que acreditamos não com o intuito de desprezar o que os outros crêem;
Escrevemos nossa memória para que os outros saibam de onde vêm;
Escrevemos nosso jeito simples de viver para que todos saibam que a felicidade é possível; que a liberdade é possível; que a simplicidade é riqueza.
E continuaremos...para sempre.

Comentários

  1. Daniel: boa sorte na apresentação do texto "o tempo da leitura" e diga lá, em Cuba, que tem uma mestiça doutora que defende suas brilhantes ideias. Paz em Nhande Rú.

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