OS ÚLTIMOS SOCIALISTAS Ou por que perseguir os povos indígenas?
Esses dias lancei um vídeo falando sobre a importância
da FUNAI para os povos indígenas. Fiz no ímpeto de aproveitar o momento e
deixei passar alguns pensamentos que só depois me ocorreram.
É que não ouvi os discursos da posse no mesmo dia
em que foram proferidos. Dia primeiro de janeiro não é um dia bom para ouvir
discursos por melhores que sejam. “Domingo eu não sofro”, canta Bethânia e um
de seus discos. É a minha regra também. Dia feriado para mim é domingo.
No dia seguinte fui alertado para o fato de que o
governo tinha baixado uma MP em que transferia parte da Funai para o ministério
da agricultura e a outra parte para o da família. Ficamos entre duas ministras
que têm gana em destruir o meio ambiente. Uma é a musa do veneno e, a outra, a
musa da goiabeira.
Acontece que fui ler os discursos e vi o que parece
óbvio para todos: um presidente eleito e empossado repetindo discursos de
campanha como uma criança mimada que não sabe brincar de outra coisa. Foi, então,
que atinei para o que não é tão óbvio assim: fala em combater o socialismo ou o
lixo marxista. A princípio achei que isso tinha a ver com os governos mais à
esquerda, mas aos poucos fui percebendo que não se trata disso. Vejam se
acompanham meu raciocínio:
Nunca houve socialismo, de fato, no Brasil. Nunca houve
socialismo político, socialismo de estado. Desde a proclamação da república
nascida na rebarba do positivismo e que pregava o progresso natural da
humanidade, passando pelo trabalhismo de Vargas não houve possibilidade de se
aplicar as teorias socialistas no Brasil. Essas vozes se faziam ouvir e chegava
no ouvido do trabalhador e quando parecia que ia vingar, os militares fizeram
uma cruzada em torno da família, tradição e propriedade. Ou seja, defenderam o
capitalismo que o pós-guerra aperfeiçoou.
Foram 21 anos no poder repetindo o mantra máximo do
liberalismo econômico: desenvolvimento, crescimento, progresso, formação para o
mercado de trabalho. Os militares não contavam, no entanto, com o verdadeiro
comunismo que estava oculto no meio das árvores da floresta amazônica. Foi ali
que encontraram a maior, melhor e mais organizada resistência: guerreiros armados
com a força da Tradição (com T maiúsculo mesmo). Estes foram capazes de peitar
o regime militar porque estes sim eram como formigas (quem não pode com a
formiga não assanha o formigueiro).
Chegamos à abertura democrática. A direita assumiu
por muito tempo. Sarney fez muito pouco pelos indígenas (não assanhou o
formigueiro também); Collor chegou e foi obrigado a demarcar o território Yanomami;
FHC, um político moderado à esquerda, preferiu também não entregar a Amazônia
ao capital estrangeiro – embora tenha sido um privatizador - porque a primeira
dama, Ruth Cardoso, era quem dava as ordens nesse quesito. Passou em branco
(sem eufemismo).
A esquerda finalmente chegou ao poder. Seria para
comemorar. Finalmente todas as demarcações sairiam; reforma agrária; empoderamento
popular; meio ambiente preservado; educação para a cidadania plena;
universidades bem aparelhadas para finalmente termos a experiência socialista.
Isso nunca aconteceu. Lula – e depois Dilma –
conseguiram emplacar muito boas iniciativas, mas eles nunca foram socialistas. Foram,
quando muito, políticos com um pensamento de esquerda. A terra indígena nunca
foi demarcada; a Funai não passou para as mãos dos indígenas porque o sistema econômico
não permitiu que o fizesse; e outras ações, como na área da cultura, foram
apenas aparatos, esmolas oferecidas para que os indígenas não reclamassem. Reconhecia-se
a presença indígena, alimentava-se a sociedade brasileira com a cultura
indígena, fingia-se que ouvia os indígenas e até premiava-os com títulos
honoríficos ou acadêmicos, mas nunca permitiram que os indígenas participassem
da sociedade como parte da elite política. Nunca ouviram o modo indígena de
ser, suas ideias, seu bem viver. Isso seria novidade!
Bom, por que estou dizendo tudo isso? Para chegar à
explicação sobre o discurso do presidente. Quando garantiu que irá extirpar o
socialismo ele não se referia ao Lula e ao PT; não se referia à universidade e
seus profissionais; não se referia às ONGS com vertente social de esquerda. Embora
ela vá perseguir esses também, o foco do discurso está nos povos indígenas,
últimos bastiões de uma prática socialista que não parte da teoria, mas da
prática. Nesse caso, ele estava usando a máxima bíblica: “os últimos serão os
primeiros”. Ele tem que convencer a sociedade brasileira que os indígenas precisarão
se tornar brasileiros também. É a retórica dos militares. “Integrar para poder entregar”,
será o bordão do desenvolvimento dos tempos atuais.
Entenderam porque a primeira MP foi a desintegração
da Funai? Quer queiramos ou não, quer gostemos ou não, quer aceitemos ou não,
essa instituição é a única que compreende os complexos sistemas epistemológicos
que esses povos detêm; seus funcionários – a despeito das denúncias que se ouvem
a respeito – são devotados a esta causa porque são eles que dão as informações que
os indígenas precisam; que se sacrificam num trabalho insano que nenhum destes
homens de preto quer. Os funcionários da Funai – indígenas ou não – são socialistas.
Os povos indígenas são intrincadamente comunistas. Os últimos. A última
fronteira. O derradeiro obstáculo. Os guardiões. É a fronteira jamais vencida
pelo liberalismo econômico.
Talvez por isso sejamos, a partir de agora,
perseguidos como nunca. Faz parte do processo do abocanhamento necessário para
que o capitalismo se renove devastando não apenas árvores e gentes, mas um
pensamento que resiste além do tempo.
Estamos na resistência.
LENDO SEUS TEXTOS, ESTOU AMANDO E TAMBÉM ESTOU ADMIRADA, SOU INDÍGENA E ACADÊMICA E ESTOU NESSA LUTA TAMBÉM. PARABÉNS PELO TRABALHO.
ResponderExcluirTalvez por isto os indígenas me encantem, por sua resistência, por sua autenticidade. Ver isto escrito me enche de alegria. São a última fronteira, o pensamento próprio, original, que não se deixa ludibriar pelo liberalismo econômico. Estão na mira do ódio presidencial.
ResponderExcluirTexto bom de ler demais! Precisamos de conhecimento sempre.
ResponderExcluirTexto maravilhoso!
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