FILHOS DA MESMA FLORESTA
Sou
paraense com muito orgulho. Nascido no norte do Brasil trago em mim as marcas
da Amazônia, seus cantos, seus ritmos, sua ginga, sua magia e seus dramas. Está
tudo em mim e ainda que eu quisesse retirar não conseguiria. O Pará está em mim
ainda que hoje não more nele. Ele reverbera em mim no meu jeito de falar, de
gesticular; pela farinha de mandioca, pela tapioca, pelo tucupi, pelo tacacá;
pelo prato misturado; pelo gingado corporal que me ajuda a dançar o carimbó do
mestre Pinduca, o siriá do mestre Verequete; pelas cerâmicas que enfeitam
minhas paredes ou pelos cocares de seus povos ancestrais que teimam em me
lembrar quem sou eu.
Sou
paraense porque trago em mim as marcas dos nossos rios, o gosto de nossos
peixes, o canto de nossos pássaros, as danças dos antepassados, o caranguejo extraído
dos manguezais, o remanso de nossas canoas, barcos, catamarãs e balsas; a
crença no saci, na Yara, na mula-sem-cabeça, no fogo fátuo, no curupira, na matintaperera,
no vira-porco, no lobisomem, na caipora, nos duendes, gnomos, fadas e espíritos
encantados.
Sou
paraense porque sou filho da terra. Sou filho dos filhos da terra. Filhos resistentes,
teimosos, manhosos, valentes. Filhos capazes de morrer para não entregar suas
riquezas ancestrais nas mãos dos gananciosos do sistema econômico que macula a
generosidade da mãe terra com um desejo insano de destruição em nome do
progresso, do desenvolvimento e do dinheiro.
Tenho
muito orgulho da gente do Pará. Sempre tive. E não somente de meus irmãos ancestrais.
Tenho orgulho daqueles que foram para lá e passaram a amar aquela terra como
sua própria casa; que desenvolveram um orgulho digno e se dedicaram ao seu
crescimento transformando a aridez de suas matas em locais habitáveis e sem
desejarem o extermínio dos locais. Gosto dessa gente que sabe gostar de gente
sem olhar a patente, sem olhar a aparência, sem se preocupar se uns furam os
lábios, as orelhas ou preferem usar cocares ao invés de bonés; baterem
chocalhos ao invés de merengue; a cultivarem mandioca ao invés de criarem gado.
Sei que existe gente assim e alguns são muito bons paraenses, emprestados que
foram de outros lugares.
Digo
isso hoje por morar em outro Estado. Foi um autoexílio por forças das circunstâncias.
Essas forças me jogaram em outro lugar como a me orientar para oferecer meu
melhor em outro canto que não o meu. Não posso julgar essas forças, mas posso
conjugar minhas forças com as delas para compor um novo panorama favorável para
todos os seres humanos.
Há
muitos que se mudam sem razões; outros mudam para sobreviver; há os que o fazem
para resistir. Sei de muitos parentes da floresta que mudaram de lugar para
sempre, infelizes que foram onde nasceram. Alguns esqueceram suas origens para não
ter que explicá-la. Tem os que o fazem por vergonha ou por medo, fugidos que são
da violência de quem é intolerante com a diferença. Tem os que abriram mão por
pura gratuidade simplesmente porque não vêm dignidade em viver em um lugar que
nos os suporta.
Eu
sou paraense. Digo e confirmo. De pai, mãe, tios, irmãos, avós, amigos,
companheiros. Nunca traí meu lugar, nunca reneguei minha origem por mais
motivos que tivesse. Algumas vezes os parentes da floresta tentam me renegar. Dizem
que não sou um deles porque não falo sua língua, porque não moro com eles,
porque tenho conforto. Alguns me ameaçam. Alguns tentam me extorquir. Alguns tentam
me amedrontar. Disso tudo apenas lamento. Lamento que não consigam compreender
a dimensão da vida humana; lamento que não consigam enxergar além de seus
próprios umbigos; lamento que tenham perdido a conexão com o universo criador;
lamento que não entendam as razões além da razão. Lamento, sobretudo, que não sejam
capazes de compreender que somos filhos da mesma seiva, do mesmo seio, da mesma
mãe. Somos filhos da mesma floresta embora tenhamos histórias diferentes. Somos
parte do mesmo rio embora navegando por braços separados. Somos galhos da mesma
árvore embora apontando em outras direções. Quando não conseguimos compreender
essas variações passamos a olhar o mundo com os olhos de quem nos maltrata, de
quem nos faz sofrer, de quem mira o lucro como fim último. Quando assim agimos
estamos abandonando o nosso lugar ainda que estejamos nele. Estamos nos
exilando na nossa própria aldeia talvez para não enxergamos o que de novo o
mundo nos proporciona.
Sou
filho da floresta. Ela é o único povo que reconheço. Sei que ela jamais renega
um filho. Ela não muda nunca e sabe acolher os seus legítimos filhos e todos
aqueles que se tornam legítimos ainda que não tenham nascido de seu seio
materno. É assim que me sinto. É assim que vivo. É isso que mostro aos que
ouvem as palavras desse filho legitimo do meu Pará.
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