Nascidos ao anoitecer


C
onheci uma figura muito interessante estes dias. Em poucos minutos ela me contou sua vida, sua trajetória, suas crises, seus sonhos. Ouvi tudo com toda atenção, pois achei a história muito sintomática de nosso país, de sua diversidade e de suas vidas paralelas.
Vou tentar sintetizar.
Estou em Juara para participar de um evento acadêmico. Chega um jovem que nunca havia visto antes. Ele se aproxima e diz que ouviu falar muito de mim. Nos cumprimentamos. Perguntei se ele era Kayabi – um dos grupos locais – e ele disse que, na verdade, era Guarani-Kaiowá. Isso despertou minha atenção especialmente porque disse que já estava em Juara desde 1985. Como eu não o conhecia? Tantas vezes já havia estado no município e nunca sequer tinha ouvido falar do cidadão. Ele se adiantou em explicar que sempre esteve por ali, mas nunca havia se dedicado a trabalhar com as comunidades indígenas. Isso só aconteceu a partir de 2010 quando direcionou sua atuação para a formação de professores. Foi aí que soube que era funcionário público estadual.
O que você está fazendo aqui? – perguntei atônito.  Qual é a sua história?
Ele passou a me falar que nunca foi educado como “índio”. Nascido em Mato Grosso do Sul foi adotado por um gaúcho ainda muito criança. Disse que havia sido abandonado por sua mãe Guarani que resolveu acompanhar um grupo de ervateiros que passava por sua localidade. Abandonado, foi encontrado pelo pai, um Kaiowá, aos prantos e famintos. Por sua vez o pai o entregou para um casal que, sem condições, o teria entregue para um vendedor ambulante que o alimentou e o levou para o sul do Brasil, lugar onde possuía uma esposa infértil, uma chácara e lugar para criar animais.
Meu novo amigo continuou me falando que tinha um segundo irmão também adotado pelo casal. Foram criados como se fossem gêmeos. Detalhe: ele, rosto e corpo indígena; o outro, louro de olhos claros. Ele, embora duvidando da informação, foi criado como irmão mais velho, uma prerrogativa que o colocava com o ônus de cuidar do mais novo e fazer todo o trabalho pesado da casa: cuidar dos animais antes de se alimentar. Ao irmão mais novo nada se pedia. Era tratado como um príncipe. Ele, como um bugre. Bugre? O que é isso? Ele um dia quis saber. Ladrão, disseram. Ele não entendeu. Não se sabia “índio”, menos ainda “bugre”.
Aos poucos ele foi percebendo sua diferença com relação aos outros. Perguntou aos pais por que era diferente. O pai, do alto de sua “sabedoria” respondeu-lhe que havia nascido ao anoitecer, diferente do irmão que nascera de dia. Não engoliu a resposta, mas como estava acostumado a levar coça do pai, preferiu não contradizer. Verdade. O pai, segundo conta, era um brutamontes. O tratava feito bicho. Estudar? Nem pensar. Apenas o irmão mais novo teve esse privilégio. Ao “bugre” cabia acompanha-lo na jornada de cinco quilômetros entre a pequena propriedade e a escola. Lembra que ficava sentado na porta da escola esperando a aula do irmão acabar para retornar para casa. Fez isso durante seis meses até ser notado pela professora que lhe presenteou com cadernos, lápis, borracha e a cartilha “caminho suave”. Chegou em casa feliz. O pai tratou de desvirtuá-lo: rasgou o regalo em mil pedaços e o proibiu de estudar. Queria que fosse apenas um roceiro cuidador da propriedade. O menino insistiu graças à professora que lhe devolveu o presente. Pela segunda vez o pai se irritou e foi até a escola e agrediu a professora a tapas rasgando-lhe a roupa e chutando seu traseiro. No dia seguinte ela continuou ajudando o curumim. Ameaçado pelo irmão mais novo, a professora disse que continuaria alfabetizando o garoto mesmo que o marmanjo voltasse e lhe rasgasse quantos vestidos quisesse. O pai desistiu da agressão à docente, mas passou a castiga-lo batendo em sua mão “com o espaldar do facão” para intimidá-lo e fazê-lo desistir da escola. O menino não desistiu e passou a se esconder para fazer sua tarefa escolar.
O menino cresceu sendo descriminado pelos pais e colegas. Nem sabia porque isso acontecia. Sentia em seu íntimo que algo estava errado. E foi uma desilusão amorosa que fez buscar seu destino. Preterido pela amada, o jovem resolveu colocar o pé na estrada. Sem lugar definido a rodoviária indicou Campo Grande e depois Cuiabá. Dali viria para Juara onde chegou com uma mão na frente e outra atrás. Formado em pedagogia que já era, procurou emprego, mas mais uma vez sentiu a dor do preconceito no novo local. Já disposto a desistir da aventura e voltar para casa, recebeu uma proposta de trabalho onde pode estabelecer uma base para sua vida.
Aparentemente a história acabaria por aí, não é? Mas ainda não acabou.
Meu amigo queria conhecer sua família de sangue, tirar a limpo a história, conhecer seus pais biológicos, ouvir da boca deles a versão da história. Cobrou dos pais adotivos uma posição. Eles repetiram a história de sempre. O amigo não se contentou. Foi atrás de seu paradeiro. Visitou os pais em Mato Grosso do Sul. A mãe – que não vivia mais com seu pai, tinha casado mais quatro vezes e tido algo em torno de 20 filhos – desconversou. Jogou a culpa no genitor. Disse que fora ele o responsável pelo abandono dele. O pai biológico contou que a mãe era a responsável. Ela o havia abandonado e sumido no mundo. O rapaz, agora um adulto, preferiu ficar com a versão do pai porque batia com o que havia ouvido do primeiro casal que dele cuidou.
Perguntei como ele se sentia nessa história toda. Como ele se auto-definia e qual sua relação com os pais adotivos. Ele tentou se manter sereno. Percebi um leve engasgamento na garganta do amigo. Ele me disse que seu corpo era de “índio”, mas sua alma era vazia. Disse que entendia o pai adotivo, pois se percebia um trabalhador graças à dureza de sua educação paterna. Retruquei falando que aquilo era violência. Infância roubada. Ele justificou afirmando que graças à dureza do pai tinha se tornado um homem de bem. O irmão mais novo, tratado como um príncipe, havia se tornado um marginal, traficante, drogado, bêbado. Morrera há algum tempo atrás após ter caído e batido a cabeça na sarjeta. Ele estava ali, vivo, educando, buscando sua identidade, procurando viver a vida que lhe foi tirada. Fiquei comovido. Disse que no final deste ano irá visitar os pais adotivos que só o registraram quando fez dezoito anos. Deve levar a família que formou em Juara. Também já se conscientizou de que deverá viver em uma aldeia quando se aposentar. Irá escolher alguma das aldeias da região. Seus filhos e esposa não concordam. Ele disse que irá assim mesmo.
Meu novo amigo não está no limiar da existência. Tem 56 anos incompletos, mas rosto de 40. É alegre, esperançoso, educador. Sua história é comovente e daria para muitas reflexões sobre a história do Brasil. Fiquei pensando em quantas pessoas viveram essa mesma situação em todo território nacional. Imagino quantos não foram tirados à força de sua comunidade e levados a viver uma vida que não era sua. Quanta gente teve a vida roubada pela ação dos neo-colonizadores, especialmente estes vindos do sul com a arrogância europeia de antanho; dos missionários católicos e evangélicos que circulavam as aldeias buscando mão de obra barata para limpar seus conventos e igrejas.

Meu amigo é Guarani-Kaiowá. É assim que ele se sente. É assim que eu o sinto. Sou solidário à sua história. Sei que ele pensa, ainda que não aceite, como um gaúcho legítimo escondido num corpo indígena. De qualquer modo, aos 56 anos de vida vivida, ele está nascendo de novo. Talvez e realmente seja/esteja nascido ao anoitecer. Bem vindo irmão. Junte-se aos que foram e são os renegados da terra, aos “nascidos ao anoitecer”.

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