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Daniel Munduruku participará do I Encontro de Contadores de Histórias da Amazônia

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Começa nesta quinta feira, dia 01, o I Encontro de Contadores de História da Amazônia.
Daniel Munduruku fará uma participação no dia 02 falando sobre sua literatura e sua arte de contar histórias.
Abaixo segue entrevista que o autor concedeu aos organizadores do evento.

Outras informações podem ser encontradas no blog http://mocoham.blogspot.com/

A contação de histórias que envolve a linguagem indigena resgata de que forma a identidade cultural das crianças e dos adultos amazônidas?
Eu penso que não exista, exatamente, uma linguagem indígena quando se fala de contar histórias. O que os indígena têm é uma visão peculiar sobre o mundo, sobre a beleza que ele exala. Falar dessa beleza é uma reverberação do universo que está dentro da gente e que as palavras não dão conta. Contar histórias é mais que encenar uma linguagem, é vivenciar uma experiência. Sob esse aspecto, é dar sentido ao nosso estar no mundo. Creio que o humano que mora no Amazônida é privilegiado por pertencer a um universo tão rico em outras humanidades [povos indígenas, ribeirinhos, sabedores tradicionais]. Já é um privilegiado por saber das fantásticas presenças que existem no seu cotidiano. As histórias indígenas, penso, ajudam a estabelecer uma ponte entre as várias tradições que interagem no homem/mulher/criança, da Amazônia.

Foram criados inúmeros estereótipos do índio, que criam uma imagem distorcida dele. Contar histórias com valores indígenas é uma maneira de quebrar esse preconceito cíclico?
As pessoas não conhecem as tradições indígenas. Elas realmente têm tido acesso à superfície, àquilo que foi sendo mostrado pelos meios de comunicação e pela educação formal através da escola. E tudo parou por aí. Nossa visão genérica desses povos os diminuiu e enfraqueceu suas presença entre os brasileiros. Nós sequer sabemos como chamá-los [por isso usamos um “apelido”].
Contar histórias a partir das tradições indígenas pode ser um instrumento legal para diminuir essa distância, mas ela precisa ser contextualizada porque muitos contadores acabam replicando o estereótipo mesmo sem o saber. Ele faz isso quando não contextualiza, quando não explica a quem ouve de quem está falando, onde vive aquela gente, como é o cotidiano dela. Sei que é uma prática difícil já que quem conta história está focado na narrativa, mas é importantíssimo que esses profissionais-brincantes possam criar formas de educar quem os escuta.

A missão de um escritor infanto-juvenil exige uma carga a mais de preocupação com a linguagem ou o conteúdo? Dialogar com a fase que o homem começa a talhar o pensamento, exige um pouco mais de responsabilidade?
Eu diria que há um erro de compreensão da sociedade ocidental. Há uma separação que, de fato, não existe quando se busca formar a cabeça do ser humano. A cabeça da criança precisa de desafios. É importante dosar estes desafios com pitadas de conteúdo que as faça refletir. A formação de uma criança crítica exige que ela leia conteúdos que a façam interagir com a realidade em que vive. Minha experiência é que toda criança consegue transcender mais que o adulto. A criança costuma ir além do real do adulto, ao mundo da fantasia onde existe outra realidade capaz de fazê-la caminhar no mundo. Por isso não é incomum ver crianças “conversando” com seus amigos invisíveis enquanto brincam no quintal ou no igarapé. Nesse momento elas estão interagindo com este outro mundo. O adulto desavisado irá dizer que ela está “louca”, confusa e que precisa ser tratada. Quem está louco é o adulto que perdeu a capacidade de transcender. A transcendência não é algo místico, é algo humano. Só a criança sabe, melhor que ninguém, ser humana.

Ser contador de história é rememorar o passado, ensinar como lidar com o futuro, uma forma de falar expor as falhas da sociedade? Ou não é nada disso?
Contar história é encontrar a si mesmo. Quem narra tem que fazer o caminho para dentro de si. Não é possível contar uma história – contar de verdade – se ela não disser algo para seu narrador. O que ela vai dizer, depende de cada pessoa. As histórias tradicionais são reveladoras de um passado que se atualiza em nossa memória. Por isso ela nos compromete com o presente. Um bom contador de histórias não é quem traz o passado para o presente, é quem dá ao presente um significado a partir das histórias que conta. Se isso vai dar liga para questionar a sociedade ou educar alguém, depende de como aquela narrativa vai cair no coração de quem a ouve. 

Em alguns textos você fala que é importante que a criança seja plenamente criança. As crianças estão perdendo ou não recebendo o quê? Como você percebe a atual fase da infância brasileira?
A criança de hoje é educada para “ser alguém na vida”. Os pais as tratam como um investimento. Elas passaram a ser objeto da educação e não mais sujeitos para serem educados. As pessoas não entendem que se a criança não for tratada como criança que ela é, mais para frente ela virará um adulto frustrado. Poderá até ser um adulto bem sucedido profissionalmente, mas humanamente será um fiasco. Não sei se vale a pena o “investimento”.
Criança tem que ser tratada como criança e não como um adulto em miniatura ou como investimento. A ela tem que ser dado o direito de assim ser. A sociedade não entende isso – os pais também não – mas o que fazemos com as crianças é um ato de violência. É um “infanticídio” existencial. A criança precisa ser cuidada...e saber cuidar é oferecer liberdade.

O trabalho do contador de história é também um agente social transformador?
O contador de histórias é um poeta, um artista mambembe, um descobridor de memórias, é um abridor de caminhos, é um inventor de sonhos. Se tudo isso ajudar a transformar a sociedade...melhor.

O I Encontro de Contadores de Histórias da Amazônia surgiu inspirado nos seus livros, que sentimento tens em participar de um evento como esse?
Fico feliz ao sentir que inspiro gente a inspirar outras gentes. Fico feliz em saber que o que sei pode servir para os saberes de gente que não conheço. Fico feliz em me saber compartilhando sonhos com sonhadores que tomaram meus sonhos como ponto de partida...e talvez de chegada.
É assim que tenho construído minha história: confessando sonhos. A verdade do que sonho é a fantasia que conto transformada em palavras.
E é muito bom saber que meus conterrâneos estão me ouvindo. É muito bom saber que andam partilhando meus caminhos pela floresta e pelas ruas de Belém, do Pará e do Brasil. Um escritor não pode querer algo mais que isso.

Que tipo de debates e contribuições você deseja transmitir no Encontro?
Venho com a intenção de partilhar os sonhos que reverberam no imaginário da gente indígena. Venho para contar que a humanidade indígena é rica, mágica e poderosa. Venho (des)contar histórias contadas ao avesso para que as pessoas compreendam o sentido de ser indígena, povo que rema na contramão da existência ocidental.

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