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Festival da Mantiqueira: escritor infantil Daniel Munduruku critica a tipificação do índio

Colherada Cultural
Por Colaborador - 5 de abril de 2014
O autor foi a atração de uma das mesas do festival neste sábado / Foto: Adriano Escanhuela
O autor foi a atração de uma das mesas do festival neste sábado / Foto: Adriano Escanhuela
- Você é índio?
- Não.
- Mas você tem cara de índio, cabelo de índio.
- Eu não sou índio, eu sou Munduruku.
“A palavra índio está ligada a todos os estereótipos possíveis”, responde o escritor Daniel Munduruku quando lhe perguntam por que ele prefere não se auto-intitular “índio” mesmo tendo em seu sobrenome a marca inconfundível da etnia. Para ele, a etnia ultrapassa em importância e em todos os sentidos a simples denominação “índio”. Por isso é que o diálogo reproduzido acima, que ele fez questão de dividir com a plateia da mesa “O rio que corre na minha aldeia”, no VII Festival da Mantiqueira, é constante em sua vida e tem sempre o mesmo desfecho: “Sou Munduruku”.
“A ideia de que índio é preguiçoso, por exemplo, é uma das mais difundidas, mas na verdade o conceito de preguiça é capitalista porque vai na contramão da produção e do acúmulo. Índio não acumula, vive o agora. Para o índio guardar agora é ter depois”, explica Daniel com a tranquilidade que lhe é característica.
Daniel é autor de inúmeros livros adultos e infantis sobre a temática indígena, e ganhou o Jabuti em 2004 com “Coisas de Índio”. É diretor-presidente do Instituto UK’A – Casa dos Saberes Ancestrais e conselheiro do Museu do Índio do Rio de Janeiro. Entre uma mesa e outra, ele bateu um papo com o Colherada sobre as questões que levantou durante a Mesa.
Colherada Cultural – Você disse que lançar um livro é como lançar uma flecha. Você pensa no seu alvo antes de atirar, quer dizer, você pensa em quem é o seu leitor?
Daniel Munduruku - Eu não escolho o alvo. Depois que eu o escrevo, o livro faz um caminho que não está no meu controle. Mas eu sempre penso numa mesma coisa: mais do que atingir a criança, tenho que atingir o professor. A criança precisa de referências e na escola o professor é a referência dela, então é que eu tenho que alcançar se quiser chegar até o pequeno leitor. Eu só finjo que escrevo pra crianças, na verdade escrevo pros adultos (risos). Se o professor se encantar e conseguir passar esse encanto pra criança, o meu alvo terá sido atingido.
Livros do autor, que escreve histórias infantis / Foto: Divulgação
Livros do autor, que escreve histórias infantis / Foto: Divulgação
CC – É comum ouvir as pessoas dizerem que a literatura torna as pessoas melhores. Você acha que isso é um tipo de elitismo?
DM - Eu não acho que pra ser feliz a pessoa precise ler. Quer dizer, você pode ser feliz fazendo muitas outras coisas. A literatura é uma ferramenta como qualquer outra. Mas numa sociedade dividida em classes, às vezes ela se pode se comportar como elitista, e em outras como libertadora. Eu, quando uso a palavra literatura, estou me referindo à todas as manifestações culturais de um povo: dança, espiritualidade, etc. Minha fala em eventos como este nunca é só sobre o livro, e sim sobre a literatura enquanto manifestação. O livro é somente o objeto.
CC – O que você acha sobre a rotulação que se faz na literatura, de dividir os livros – inclusive o seu – em uma ou outra categoria?
DM - É algo muito quadrado isso de dividir os saberes em caixas. Eu venho de uma cultura em que os saberes são circulares e essa circularidade permite às pessoas que se realizem integralmente como seres humanos. Não existe alguém fazendo e outro aplaudindo porque todo mundo sabe fazer, é capaz. Na verdade esse sistema é todo feito pra que alguém se sobressaia e pra estimular a disputa.
CC – E como é a sua relação com o meio literário?
DM - É muito cheio de vaidades, sobretudo na chamada literatura adulta, que costuma se considerar melhor que o escritor infanto-juvenil. Acho que o escritores infantis costumam ter uma energia melhor, a sensibilidade deles é mais latente, menos atrelada a vaidades e mais preocupada com a simplicidade.
CC – Que dica de leitura você daria pros nossos leitores?
DM - Alberto Mussa. Os livros “Meu Destino é Ser Onça” e “O Senhor do Lado Esquerdo”.
Por Renata Penzani, jornalista, colaboradora do Colherada e autora do blogFurtacores.tumblr.comO Colherada Cultural está em São Francisco Xavier à convite da organização do evento.

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