Entre a cruz e a espada: A presença missionária em terra indígena e o Estado Laico.

“¿Qué ha significado la aceptación de la fe cristiana para los pueblos de América Latina y del Caribe? Para ellos ha significado conocer y acoger a Cristo, el Dios desconocido que sus antepasados, sin saberlo, buscaban en sus ricas tradiciones religiosas. Cristo era el Salvador que anhelaban silenciosamente (...). haber recibido el Espíritu Santo que ha venido a fecundar sus culturas, purificándolas y desarrollando los numerosos gérmenes y semillas que el Verbo encarnado había puesto en ellas (...) En efecto, El anuncio de Jesús y de su evangelio no supuso, en ningún momento, una alienación de las culturas precolombinas, ni fue una imposición de una cultura extraña”. (Discurso do papa Bento XVI na abertura da V Conferencia Geral do Episcopado Larino Americano e do Caribe, em Aparecida no dia 13/05/2007)

Introduzindo a questão
É sabido desde há muito tempo que o trabalho missionário que os Jesuítas vieram desenvolver no Brasil quinhentista tinha um cunho político. Vieram para conseguir a aprovação dos regulamentos em tempo recorde e seus primeiros missionários aqui chegaram sem o mínimo de preparação pessoal e emocional para lidar com o Outro que aqui viriam encontrar. Para eles, os nativos eram apenas almas a serem somadas ao vasto império celeste. E mesmo que se valessem de boas intenções, realizaram atrocidades contra os indígenas que habitavam esta terra e que, de certa forma, culminou numa crise de identidade que ainda hoje se é capaz de sentir na formação do ethos brasileiro.
O mais interessante que isso sempre foi reforçado por um aparato estatal - ou real -, que desenvolveu um olhar sobre os indígenas como seres a serem dominados “a ferro e fogo” para se cumprir a missão de colonizar esta terra para a “glória de Deus”. Esta misteriosa simbiose, entre Igreja e Poder secular, invadiu o tempo mesmo na época em que os jesuítas foram expulsos do Brasil e continua até os dias de hoje, quando se observa a ambigüidade do Estado que é reconhecidamente laico e que tem como função constitucional o cuidado com os povos originários e, ao mesmo tempo, permite a atuação missionária em território indígena num franco desrespeito à constituição e ao povo brasileiro.
É isso que iremos abordar nesse pequeno artigo.
1549.
Chega ao Brasil Manoel da Nóbrega. Veio em nome do Rei de Portugal. Pertence à congregação Companhia de Jesus, fundada recentemente por Inácio de Loyola, um homem oriundo das armas e que tinha recebido a missão de formar um exército para combater as heresias que grassavam pela Europa naqueles tempos, herdeiros das cruzadas contra os infiéis do oriente.
É verdade que Loyola nada sabia sobre as novas terras “descobertas” pelos portugueses e somente havia recebido noticias sobre os “homens nus” que aqui encontraram. Mas isso não o impediu de reforçar os seus seguidores a necessidade que teriam de fazer valer aqui as mesmas regras morais e espirituais que os norteavam no velho mundo. Era preciso transformar a nova terra em um verdadeiro paraíso terreal onde se pudesse fazer valer os valores da sociedade civilizada européia, modelo de vida e santidade para todos.
Foi assim que Nóbrega investiu-se do poder de realizar o projeto missionário dos Jesuítas no Brasil. Estava, é claro, a serviço do poder real que lhes forneceria condições materiais para realizar a empreitada. Vinha, pois, conduzindo uma cruz que lhe daria poder religioso sobre os enviados portugueses, mas também sobre os povos originários que não teriam escolha a não ser aceitar a maravilhosa novidade do evangelho. Por outro lado vinha acompanhado do poder secular representado pelo governador geral Tomé de Souza, braço armado da coroa. Trazia, portanto, na outra mão a espada para lembrar aos cidadãos e aos selvagens quem realmente era dono daquela terra.
Os Jesuítas aqui chegaram sem nenhum preparo especial. Vinham cegos sem saber o que iriam de fato encontrar. Traziam consigo, no entanto, a convicção de que estariam contribuindo para a expansão do reino dos céus na terra não se importando se os nativos entenderiam ou não sua proposta de conversão. Não entenderam. E também os Jesuítas pouco se ocuparam em entender o pensamento nativo e passaram a impor valores e comportamentos estranhos a eles. Trouxeram a cruz, mas não a carregaram. Legaram aos indígenas o trabalho de transportá-la na vida e no inconsciente criando uma dependência que se faz notar ainda hoje nestas populações . Para Gambini “o começo do povo brasileiro é o começo do fim da alma ancestral da terra. É um instante de intersecção, em que algo principia e algo começa a ser extinto” (Gambini, 2000. Pág.23).
Não é preciso relatar as trágicas conseqüências advindas por conta da atuação missionária da Igreja Católica. Muitos autores já o fizeram de maneira detalhada e alguns indígenas também já expuseram seus sentimentos com relação a esta atuação missionária criando lindos depoimentos que demonstram a incompatibilidade entre as diferentes visões cosmológicas. De um lado estava a visão maniqueísta dos jesuítas, que supunha sempre que o Outro era a encarnação do demônio. Do outro lado, estava a visão holística dos nativos que tinha como principio a liberdade e a certeza da presença do sagrado em tudo.
Vale lembrar, no entanto, que as populações indígenas foram escravizadas primeiramente pelo poder temporal do rei, ainda que, em alguns casos à revelia dos missionários. Estes, no seu afã universalista, levaram às ultimas conseqüências o primado da ação eclesial atuando durante séculos na tentativa de converter os indígenas para a fé cristã. Nem por isso deixaram de ser coniventes com a atuação menos comprometida do Estado fechando os olhos para a destruição a que foram expostos os povos originários ao longo da história brasileira.
1757.
A separação só foi feita, ainda que de modo unilateral, quando, em 1757, o ministro marquês de Pombal fez publicar um diretório que previa transformar os indígenas em mão-de-obra disponível. Nesse mesmo ano fez com que os Jesuítas fossem expulsos do Brasil e oficializou o português como língua principal obrigando todos os comerciantes a não mais falarem o tupi, até então a mais falada por todos.
Isso gerou claros protestos da Igreja contra aquela ação que jogava por terra a ação evangelizadora nos territórios indígenas. O fato mais relevante é que o Estado brasileiro passava a ter maior controle sobre os indígenas e isso provocava um novo olhar para a situação destas populações. É claro que isso não significou um “amansamento” no trato delas. Pelo contrário, era uma forma de escravizar, perseguir, matar, espoliar, dividir e dispor dos indígenas do jeito que o governo achasse melhor. Nesse sentido, a presença missionária servia como um álibi aos indígenas na preservação de suas culturas e tradições.
Durante o século XIX a usurpação das terras ocupadas pelos povos originários passou a ser também um motivo para o extermínio de vários grupos. Os Estados do Espírito Santo, Minas Gerais, Paraná e Santa Catarina foram os principais alvos da saga expansionista de Dom João VI. Os mandatários não poupavam quem quer que fosse destruindo aldeias, massacrando povos inteiros. No sul do Brasil esses invasores eram chamados de bugreiros, espécie de bandeirantes caçadores de índios.
No final do século XIX, com a proclamação da República, uma visão positivista tomou conta do pensamento oficial. Havia um interesse na integração das populações indígenas para transformá-los em trabalhadores nacionais. Para isso ocorreu novamente a aproximação entre Governo e Igreja. Esta foi convocada através das congregações religiosas missionárias – como espiritanos, franciscanos e salesianos – para iniciar um trabalho junto aos indígenas, especialmente na região amazônica. Dessa época é surgiram os grandes centros missionários no médio Amazonas e no Alto Rio Negro. Ali foram ressuscitados os internatos e as colônias-missões.
Os salesianos foram os protagonistas de uma série de construções nas regiões acima citadas onde desenvolveram um árduo trabalho missionário que ainda hoje traz consigo antigas denúncias de maus tratos e escravidão. Também no Mato Grosso, a forte atuação salesiana foi alvo de denúncias orquestradas pelo próprio Marechal Candido Rondon quando por ali passou em 1912 . A despeito de todas as denúncias o governo federal manteve a aliança com as missões por serem elas o único elo que tinham com os povos indígenas e poderiam ser úteis no processo civilizatório.
“Em 1910, para fazer frente à prática desestruturadora da catequese cristã, um grupo de positivistas republicanos liderados pelo marechal Cândido Mariano Rondon criou o Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais – SPITLN, ligado ao Ministério da Agricultura. Mesmo pretendendo ser uma alternativa ao trabalho missionário, com o tempo, a ação da entidade se tornou ambígua, no momento em que passou a considerar o indígena também como mão-de-obra laboriosa, em vista da substituição ao trabalho escravo” (PREZIA,2001. Pág.62)
A história do SPI – como ficou conhecido na década de 1940 – não foi diferente das experiências anteriores e acabou se tornando um órgão acometido das mais diferentes denúncias que iam de maus tratos à venda de títulos de terra aos invasores dos territórios indígenas. É dessa mesma década a figura jurídica da tutela instituída pelo código civil que afirmava serem os indígenas relativamente incapazes de gerir suas próprias vidas e decidir seu destino aumentando a presença do Estado na vida e nas ações destes povos.
Somente em 1967 é que o SPI deu lugar à Fundação Nacional do Índio – Funai – cuja constituição nada mudou para as populações originárias. Esta instituição acabou se tornando um instrumento de implantação de políticas desenvolvimentistas de ocupação do território nacional, praticando a remoção, o confinamento, a cooptação das lideranças indígenas e a mistura entre diferentes povos.
1988.
Com a aprovação da nova constituição, os povos indígenas imaginaram que parte de seus problemas estariam resolvidos uma vez que o Estado Nacional tinha finalmente reconhecido a capacidade de auto-organização de suas sociedades. Com isso posto, estava-se a um passo da autonomia tão desejada nos séculos anteriores. Pela nova Carta Magna era reconhecido aos povos indígenas o direito ao usufruto exclusivo ao território onde tradicionalmente habitavam; à organização política; a auto-representação diante da sociedade; o direito a uma educação diferenciada e bilíngüe. Por força da lei caía também o regime tutelar dando amplas possibilidades organizacionais para as populações originárias. A Constituição garantia, inclusive, que até 1993 todas as terras indígenas seriam demarcadas mostrando que o Brasil via seus indígenas com dignidade merecida. Isso previa mudanças na atuação do Estado com relação a estes povos.
Tudo não passou de uma ilusão. Embora a lei seja muito favorável aos povos indígenas, houve e ainda há muito que ser regulamentado. E aqui entra, a meu ver, o ponto nevrálgico da questão que estamos comentando que é o fato de que a nova Constituição reafirma o caráter laico do Estado Brasileiro entendendo-se com isso que cabe a ele a assistência exclusiva e de caráter secular aos povos indígenas.
Missões em terras indígenas: um afronta ao caráter laico do Estado.
Quando no século XVI os Jesuítas se constituíram numa espécie de salvadores de almas, de homens santos que trariam a paz e a salvação aos selvagens locais, não levaram em consideração a cosmologia dos Tupinambá. Este povo tinha uma teologia muito rica que não foi compreendida por eles. Ao contrário, trataram de desclassificá-la fazendo introduzir a catequese católica cujo alvo principal era as crianças no intuito de atingir os futuros líderes da comunidade.
O testemunho de Anchieta é sintomático:
“Temos conosco alguns filhos dos gentios. Eles apartam-se tanto dos costumes dos pais, que passando aqui perto de nós o pai dum e, visitando o filho, este muito longe esteve de mostrar qualquer amor filial e terno, de maneira que só por pouco tempo é que falou com o pai; deste modo põem muito acima do amor dos pais o amor que nos tem” (Prezia, 2001. Pág.74)

Esta prática continuou ao longo do processo de conversão até nossos dias. Os internatos organizados em diferentes regiões do País tinham os mesmo propósitos e conseguiram os mesmos resultados: jovens sem identidade, sem sentido, sem caminho porque perderam o que os diferenciava do resto da população brasileira que é sua cultura e sua crença nos seres ancestrais.
Ora, isso acaba nos conduzindo para uma conclusão amarga, mas real: as missões fazem mal aos povos indígenas. Sempre o fizeram, como nos lembra Gambini (:2001. pág 147):
“O processo ainda corre o continente de ponta a ponta, com essa massa de sobreviventes de si mesmos contemplando o vazio como pastores de sua alma perdida, herdeiros talvez nem eles mesmos saibam do quê. “Aculturados” nas franjas da urbanização, nos caminhões de bóias-frias, nos postos indígenas, nos botequins de estradas ou pontos turísticos, óculos de plástico e crucifixo no pescoço, sem eira nem beira, vendendo flechas enfeitadas com penas de galinha, tutelados, incapazes, apátridas na terra que era só sua”.
E o que pode nos parecer mais contraditório é justamente o fato de que a comprovação da destruição da alma indígena não é suficiente para que o Estado, responsável direto pela assistência aos indígenas, tome uma providencia no sentido de fazer valer a lei máxima que garante ser anticonstitucional a continuidade da presença missionária – sob qualquer denominação – em terra indígena. A sentença é simples: se o Estado é laico e os indígenas estão sob o cuidado dele, então não tem sentido manter instituições que fazem proselitismo religioso. Isso causa interferência direta na cultura destes povos sendo, portanto, um crime que pode virar etnocídio cultural e perda imediata da identidade étnica. A liberdade religiosa é também o direito de não ter religião alguma e isso só é garantido por um estado laico, de fato (Fischmann,2007).
Ora, se isso me parece uma verdade a ser considerada, a recente visita do papa Bento XVI – como a nos lembrar que foi no século XVI que as atrocidades contra os povos indígenas começaram – afirmou peremptoriamente que a empreitada missionária na América Latina “não supôs, em nenhum momento, uma alienação das culturas pré-colombianas, nem foi uma imposição de uma cultura estranha” (BENTO XVI, 2007), em franca desconsideração à história de sofrimentos dos povos originários.
Diz ainda o papa no mesmo discurso: “(...) mas o que significou a aceitação da fé cristã para os povos da América Latina e do Caribe? Para eles significou conhecer e acolher Cristo, o Deus desconhecido que seus antepassados, sem o saber, buscavam em suas ricas tradições religiosas. Cristo era o salvador que ansiavam silenciosamente”. Como se pode notar, este discurso, feito na celebração de abertura da V Conferencia Geral do Episcopado Latino Americano e do Caribe, na cidade de Aparecida, é um discurso de negações. É um discurso que afirma a sacralidade da Igreja e de sua mensagem, mas nega a violência cometida contra os povos originários e a riqueza de suas tradições ancestrais, capazes de lhes oferecer sentido e liberdade.
Não foi um discurso inteligente. O Brasil não pode ficar à mercê de uma doutrina que continua achando que sua anima é inferior ou deve ser submissa. Em última instância, o Estado brasileiro precisa ser laico, apenas isso.

Bibliografia
Albert, Bruce e Ramos, Alcida (orgs.) Pacificando o Branco: Cosmologias do contato no Norte Amazônico. Unesp. SP, 2000
Carneiro da Cunha, Manuela. História dos Índios no Brasil. Companhia das Letras. SP, 1992.
Fischmann, Roseli; Vidal, Lux; Doniste, Luiz (orgs). Povos indígenas e tolerancia: construindo práticas de respeito e solidariedade. Edusp. SP, 2001
Gambini, Roberto. O espelho Índio: a formação da alma brasileira. Axis Mundi/Terceiro Nome. 2001.
Montero, Paula (org.) Deus na Aldeia. Editora Globo. SP, 2006.
Novaes, Adauto (org.) A outra margem do ocidente. Companhia das Letras. SP, 1999.
Prezia, Benedito. Outros 500. Construindo um nova história. Salesiana. SP, 2001.
Whight, Robin (org.) Transformado os Deuses: igrejas evangélicas, pentecostais e neopentecostais entre os povos indígenas no Brasil. Editora Unicamp. SP, 2004.

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