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Daniel Munduruku e a educação

Autor de 47 livros, educador fala da importância da presença da cultura e da literatura indígena nas escolas do Brasil

Arquivo pessoal
Munduruku pontua a importância de valorizar o conhecimento dos povos nativos nas escolas das cidades
“O padrão de escola que temos não é único, ele é apenas mais uma das formas de transmissão de conhecimento” diz Daniel Munduruku, escritor e educador nascido em uma das comunidades do povo munduruku no Pará. Com 47 livros publicados, ele saiu de sua comunidade e hoje espalha pelo mundo a cultura e a literatura indígena.
Segundo ele, a distância que existe entre a cultura urbana e as comunidades dos povos nativos brasileiros reforça, ainda hoje, preconceitos enraizados na população desde os tempos da colonização. Isso vale também para a educação indígena que passou a existir formalmente apenas com a Constituição de 1988. Atualmente ela luta para preservar os saberes ancestrais dos povos que sobreviveram.
Munduruku pontua a importância de valorizar o conhecimento tradicional nas escolas das cidades. Só assim as crianças serão capazes de entender que há outras formas de ensinar e de educar. “Entre esses saberes está a oralidade e outros conhecimentos que não permeiam as escolas convencionais e fazem parte da educação indígena brasileira”, completa.
Na posse da presidenta Dilma Rousseff, a pauta principal do discurso foi a valorização que o atual governo pretende dar para a área de educação. Sobre o uso do termo “pátria educadora”, no discurso de posse de Dilma, Munduruku afirma: “gostei dessa expressão, apesar de achar que ela não sabe ao fundo o que é. Trata-se de algo muito profundo. Significa enxergar além da educação formal. Entender a sociedade como um todo e compreender que há muitos espaços educativos além da escola”.
Em entrevista exclusiva ao Portal NAMU, Munduruku fala sobre a situação atual da educação no Brasil, a literatura indígena e os desafios de fazer com que a sociedade aprenda a enxergar as comunidades tradicionais sem o “olhar colonizador”.
Quais os maiores desafios que o Brasil enfrenta na área da educação?
Acredito que a primeira grande dificuldade é dar prioridade à educação. O governo terá de tomar providências para problemas como a desvalorização dos professores, a evasão escolar, a questão da alfabetização na idade certa. Outro desafio é acabar com o analfabetismo funcional. Também vejo a necessidade de se criar políticas que sejam mais regionalizadas e tratadas com mais autonomias pelos estados e municípios. Só assim é possível dar respostas locais. No caso da educação indígena, temos de formar indígenas não para serem não indígenas, mas para continuarem indígenas mesmo tendo formação escolar. A educação do Brasil como um todo não deve ser simplesmente técnica, seu principal objetivo deve ser produzir cabeças pensantes e profissionais qualificados intelectualmente para dar respostas criativas para os problemas brasileiros.

Qual sua opinião sobre o novo ministro da Educação, o político cearense Cid Gomes, do PROS?
Não tenho opinião formada. O que se pode pensar a respeito da atuação dele é verificando o que ele fez no Ceará e não me consta que tenha sido uma administração muito voltada para a educação. É um politico e não um educador e eu não posso esperar muito de um político. Se fosse um educador talvez eu tivesse mais expectativas positivas.
O que é a educação escolar indígena no Brasil hoje? Em que ela se difere da educação convencional?
Desde a constituição de 1988, as populações indígenas têm direito a uma educação diferenciada, que deve seguir os parâmetros das próprias comunidades. Os professores devem ser indígenas e ter formação superior. Além disso, é necessário materiais de acordo com essas populações, mas esse desenvolvimento está lento. Após quase 30 de promulgação da Constituição, não houve uma continuidade na política educacional para as populações indígenas. Houve um avanço significativo nessa área, mas isso ainda não responde às demandas. Na prática, os indígenas precisam entrar em contato com a educação formal sem abrir mão dos conhecimentos tradicionais.
Qual a importância de valorizar os saberes imateriais da cultura indígena na educação?
A cultura e os conhecimentos tradicionais indígenas são fundamentais para a identidade brasileira. Os cantos, os ritos de passagem, o jeito tradicional de transmissão de conhecimento devem ser mantidos nas comunidades e, ao mesmo tempo, precisam ser valorizados nas escolas convencionais para que as crianças entendam que há diferentes maneiras de ensinar e de educar. O padrão de escola que temos não é único, ele é apenas mais uma das formas de transmissão de conhecimento. Dar oportunidade para as crianças da cidade refletirem sobre os conhecimentos tradicionais indígenas vai criar nelas também um sentimento de pertencimento. A sociedade brasileira não é apenas uma sociedade ocidental, ela é o resultado do acúmulo de diversos povos, conhecimentos e tradições. Os saberes dos indígenas, dos africanos, dos ribeirinhos da Amazônia e de outros povos que vieram pra cá são importantes e devem ser ensinados nas escolas.
E como isso acontece na prática?
Efetivamente, com a Lei nº 11.645, que inclui no currículo oficial da rede de ensino brasileira a obrigatoriedade de história e cultura afro-brasileira e indígena. No geral, a lei é muito positiva, principalmente porque ajuda a criar uma visão positiva na cabeça das pessoas. Porém, há muitos educadores ainda sendo formados dentro da mentalidade que coloca os indígenas como seres inferiores. É preciso fugir desse modelo estereotipado. Mas vejo que as universidades e as prefeituras estão preocupadas em oferecer cursos de formação. Imagino que na perspectiva da presidenta Dilma, ela deve investir radicalmente na formação dos professores para lidar com a diferença e com a diversidade.
Como a educação pode se tornar uma ferramenta capaz de transformar a sociedade?
A educação é a melhor ferramenta, mas precisa se atualizar, assim como o mundo está se atualizando. Infelizmente a educação fica sempre correndo, a passos lentos, atrás da modernidade. É preciso criar uma forma de atualização mais rápida para que ela cumpra com seu papel. Por incrível que pareça, temos de voltar a aprender com o passado para que se pense nas pessoas como produtoras capazes de transformar a sociedade e criar uma massa crítica. É o questionamento que gera mudanças. A escola deve ser esse instrumento. Ela é o espaço onde jovens e crianças aprendem a questionar a sociedade em que vivem e assim se tornam sujeitos capazes de transformá-la.
Como compreender a literatura indígena como uma ferramenta de quebra de padrões e preconceitos?
A literatura indígena surgiu no Brasil há cerca de 20 anos. Existia sempre a crença de que o indígena é um ser da oralidade, mas muitos indígenas começaram a frequentar a universidade. Aprenderam os elementos da cultura ocidental e fazem aquilo que a cultura tem que fazer que é: se atualizar e assim criar respostas. Uma das respostas é a literatura. Os indígenas foram para o cinema, música, teatro, internet. A literatura não é só um instrumento de escrita, mas faz parte da essência. Adquirir essa técnica foi importante para que os indígenas fossem capazes de escrever a própria história. Fico feliz por ser um dos pioneiros nisso, ter passado pela universidade, feito mestrado, doutorado e, sobretudo, por poder ter usado todos os conhecimentos que acumulei na cidade aliados aos saberes que eu trazia do meu povo para poder criar o que é chamado de literatura indígena. Ela é uma maneira para educar a sociedade brasileira, ensina a olhar para os povos indígenas não com o olhar do colonizador, mas com o olhar das próprias comunidades. A maioria dos 47 livros que publiquei é para crianças e jovens, mas digo que é para todo mundo. Porque eu escrevo não exatamente para crianças e sim para a infância das pessoas e todo mundo tem e teve uma infância. Não que sejamos crianças o tempo todo, mas a nossa infância é sagrada.
Foto 2: Vanessa Cancian

Fonte: http://namu.com.br/materias/daniel-munduruku-e-educacao

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