A literatura indígena, segundo Daniel Munduruku (Entrevista para o Blog do Inst. Ecofuturo)



"O brasileiro precisa conhecer de verdade que o que ensinam para ele – sobre nossos povos e outros temas – é mentira", afirma Daniel Munduruku em entrevista exclusiva ao Instituto Ecofuturo. Autor de mais de 40 livros e um dos mais respeitados autores indígenas do país, Munduruku fala da vitalidade dos saberes ancestrais e de como os brasileiros, que são também indígenas na sua essência, ignoram tradições fundadoras da nossa própria identidade. À frente do Instituto Uka – Casa dos Saberes Ancestrais, o escritor acredita na força da literatura como “grito consciente e consistente” de povos cujas vozes foram, durante séculos, silenciadas e luta para que se cumpra a lei 11.645/08, que tornou obrigatório o ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira e História e Cultura Indígena nas escolas.
 
 
Como você descobriu a literatura, como leitor e escritor?
 
Nunca fui um exímio leitor. Descobri a leitura – e não a literatura – quando já era adolescente. Na escola religiosa em que eu estudava, tinha uma excelente biblioteca e isso me seduzia bastante. No entanto, os livros eram em sua maioria religiosos. Me peguei, assim, lendo biografias de santos; livros que tratavam de questões espirituais. Enfim, eram leituras que tinham a ver com minha formação dessa época de estudos. Um pouco depois passei a escrever alguns textos ligados à catequese e aos momentos de festejos religiosos. Lembro que o primeiro texto que escrevi e tive coragem de mostrar para meu professor de português foi sobre a páscoa. Ele achou tão bom que pediu que eu reproduzisse no mimeógrafo a tinta e distribuísse na paróquia no dia da páscoa. Para mim isso foi a glória. Eu tinha uns 16 anos. Depois disso, não lembro de nenhum outro texto que tenha escrito e se tornado público. Recordo-me, porém, que me tornei um leitor voraz de textos literários que me caíam nas mãos.
 
Como foi a sua experiência, ao se deparar com narrativas e representações tão diferentes das do imaginário indígena, que são aquelas veiculadas pelo cânone literário? Houve conflitos de alguma espécie?
 
Eu sempre fui muito curioso, desde criança. Nada me surpreendia no mundo imaginário de minha infância. Isso foi fundamental para que não tivesse problemas com as leituras posteriores. Eu entendia que a literatura era um devaneio de gente morta. Autor para mim era um ser distante, habitante de outro mundo. Algumas vezes achava que eles não eram humanos. O que me deixava furioso era como eles conseguiam “amarrar” tantos personagens numa história comovente e verdadeira. As histórias indígenas são muito bem elaboradas também, mas normalmente têm poucos personagens e não têm dramas tão elaborados. Lembro que chegava a perguntar para meus pais e avós sobre isso e eles diziam: “O homem branco não sabe ser simples”. Não entendia nada do que eles falavam naquela hora. Só entendi bem depois – o que me deixou bastante contente, pois era um pensamento muito coerente com a compreensão que tinham da vida.
 
A apropriação da escrita e da literatura, com todo o seu potencial transformador, pode aproximar diferentes etnias e funcionar como mediadora nos entrechoques de diferentes culturas? Como?
 
Tenho trabalho na perspectiva de que a literatura é um caminho de aproximação entre os diferentes povos indígenas. Mesmo sabendo que há uma grande diversidade de saberes e culturas, sinto que a literatura pode funcionar como elemento aglutinador, além de ser um instrumento para “soltar a voz” que tem ficado entalada na garganta de nossa gente ancestral. Nosso desafio é ajudar nossa gente a aprender a usar a escrita como porta-voz. Na medida em que isso for acontecendo, o que era apenas um murmúrio irá tornar-se um grito consciente e consistente.
 
De que forma os povos indígenas se apropriam da cultura escrita e como a utilizam em seu favor?
 
A escrita é uma técnica. A gente aprende a escrever. O que a gente tem é que fazer uma ligação entre o pensamento que domina a cultura e a escrita que congela este pensamento. Mas isso também é uma questão de tempo, de treino. Gosto de pensar que a gente indígena já tem a parte mais difícil introjetada no seu próprio ethos: o conteúdo a ser escrito. Temos trabalhado no sentido de ajudar nossos parentes indígenas a colocarem seus pensamentos no papel e dar a ele uma forma literária, acadêmica ou apenas como exercício de reflexão. Quando isso chega inteligível à sociedade brasileira, acreditamos que é nossa forma de contribuir para diminuir a exclusão social a que ainda estamos submetidos.
 
O que é literatura indígena e quais as abordagens narrativas que geralmente a caracterizam, se é que se trata disso?
 
Nós remamos contra a maré. Entendemos literatura indígena como o conjunto de manifestações culturais que são reproduzidas por nossa gente em seus rituais, desenhos, cantos, danças, rezas, etc. Fugimos um pouco da ideia de literatura como escrita. Queremos mostrar que este nosso jeito de comunicar é literário. Se pensarmos que no mundo literário é preciso que haja iniciados nele para compreendê-lo, podemos imaginar que nossa forma de fazer literatura é um código que a sociedade não indígena precisa aprender para poder nos compreender. Nosso esforço em compreender a sociedade brasileira passa pelo domínio das novas tecnologias (a escrita entre elas). É justo que a sociedade letrada pense no movimento de nossos corpos como literatura. Claro que estamos tentando aprender direito e adentrando no universo da literatura ocidental seguindo os cânones estilosos que nos propõem, mas queremos criar um jeito todo próprio de nos comunicar a partir desses instrumentos não indígenas.
 
Tributários que somos como brasileiros, de uma forte tradição indígena, que é parte constitutiva de nós mesmos, quais os estereótipos que ainda persistem na nossa “representação do índio” e como podemos superá-los, reconhecendo essa tradição como nossa ancestralidade?
 
A ancestralidade não é para ser pensada como algo atrasado e parado no tempo. Este é um dos estereótipos que estão presentes na mente brasileira. O mesmo se pode dizer da tradição. Este conceito está ligado a sociedades paradas no tempo. Não tem falácia mais imprópria. Isso tem que ser combatido com novos conceitos e vivências. É preciso que as pessoas entendam que não há nada de errado em respeitar o passado. O errado é negá-lo. Acontece que muita gente “olha para trás” para ver o passado. Os povos indígenas não fazem isso. O passado se une ao agora, ao presente. Não há nenhuma possibilidade de um indígena chorar o passado, pois ele sabe que este tempo é memorial. Ele não é real. Portanto, o brasileiro é um indígena essencialmente. O indígena é brasileiro apenas por acidente geopolítico. Por isso não entendo um país que não valoriza seus antepassados sem precisar chorar por eles, uma vez que eles estão no seu sangue. Por que isso acontece? Porque nunca ninguém disso isso ao brasileiro. A ele foi ensinado que índio é bicho, atrasado, incompetente no uso da terra, preguiçoso, desumano. Isso é ainda hoje ensinado – se não pelas escolas, em casa – ao inconsciente nacional. A mídia tem muita responsabilidade sobre isso, até mais que a escola. Aliás, a escola é sempre a última a receber notícias atualizadas sobre os povos indígenas; há muitas dezenas de anos que ensina a mesma coisa porque acredita que o que está estabelecido é a verdade absoluta. O brasileiro precisa conhecer de verdade que o que ensinam para ele – sobre nossos povos e outros temas – é mentira.
 
Em entrevista recente, você afirmou: “Um adulto, se quiser ler meus livros, terá que fazer um exercício para ouvir suas vozes ancestrais. Isso as crianças fazem sem esforço”. Por quê?
 
As crianças têm um canal aberto com sua ancestralidade. Elas são emotivas e conseguem chegar onde os adultos não chegam. Os adultos costumam ser bloqueados pelas vozes da escola, da economia ou da política. Isso os impede de “acordar” as memórias ancestrais que trazem em si. O adulto precisa se curvar a esta verdade, caso queira compreender a escrita indígena.
 
Se oferecermos, desde a primeira infância, a música dessa voz ancestral, teremos chance de formar adultos melhores, capazes de ouvir, respeitar e dialogar com essa voz?
 
Penso que crianças completas serão adultos completos. Ponto. Simples assim. A criança vem sem defeito de fábrica. Portanto, vem trazendo consigo todo o equipamento para viver bem. Acontece que ela cai num mundo que acha o contrário, pensa que ela vem sem nada e que precisa ser formada – colocada na forma – para ser “alguém” na vida. A solução do dilema é educar a criança para  ser criança e nada mais. Qualquer outra tentativa de fazê-la ser o que ela não pode ser vai transformá-la em adulto frustrado.
 
Uma das frentes trabalhadas pelo Instituto Uka – Casa dos Saberes Ancestrais é a Caravana Mekukradjá, que visa difundir a literatura indígena. Entre as atividades oferecidas, há cursos e palestras para professores sobre como trabalhar a questão indígena em sala de aula. Em linhas gerais, quais as orientações repassadas aos docentes?
 
Procuramos mostrar aos educadores exatamente o que dissemos atrás: tá tudo errado na compreensão de nossos povos indígenas. A gente tem que desconstruir o paradigma que eles trazem dentro de si, fruto da educação familiar e escolar. Fruto da universidade que não o ajudou a colocar algo novo em sua mente. Dizemos aos educadores que é preciso tratar a criança como criança e não como um investimento futuro. Dizemos que é preciso que o educador saiba que tipo de ser humano ele acredita estar formando. Aí questionamos as suas crenças, seus dogmas. Às vezes temos êxito, outras não. Isso faz parte do processo.
 
O Concurso FNLIJ Curumim chega este ano à sua 10ª edição. O que há para comemorar e quais os desafios ainda encontrados?
 
Comemoramos muitas conquistas. Uma delas é termos chegado à 10ª edição com muitos bons resultados. Este concurso, assim como outras iniciativas que mantemos, tem valorizado o professor que trabalha a temática indígena em sala de aula utilizando a literatura como instrumento. Faz com que o educador procure conhecer a produção literária dos indígenas brasileiros; ele influencia seus alunos; ajuda-nos a “corromper” a cabeça das crianças e jovens para aquilo que consideramos um ganho futuro: teremos adultos mais conscientes de seu papel numa sociedade multicultural como a nossa. Ainda assim, temos desafios. Temos que fazer as escolas e os educadores conhecerem a lei 11.645/08, que tornou obrigatório o ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira e História e Cultura Indígena nas escolas; temos que formar educadores para trabalharem a temática indígena de forma adequada; temos que organizar muitas caravanas para mostrar nossa produção literária. Daí a importância do Instituto Ecofuturo e do Instituto C&A, que são nossos parceiros nesta empreitada, porque, como nós, acreditam na possibilidade de formamos seres humanos mais compatíveis com a realidade multifacetada que hoje temos.
 
Além da literatura, quais outros instrumentos e expressões estéticas podem contribuir para a abordagem aprofundada da questão indígena?
 
Dizia mais acima que todas as manifestações da cultura indígena se prestam para a compreensão de nossa diversidade. Neste sentido é importante pensar estas manifestações como parte da cultura e não separada dela. A cultura é um conjunto. É bobagem tentar extrair dela elementos distintos. Uma cultura tem que ser compreendida em sua totalidade e não apenas através de suas manifestações. Quem faz isso é o ocidental, que aprende a dividir os conhecimentos em quadrados guardados a sete chaves. A nova escola tem que pensar no conjunto. O novo ser humano tem que ter isso claro. Caso contrário, ele não será novo.
 
 
Escritor indígena com 43 livros publicados, Daniel Munduruku é graduado em Filosofia, com licenciatura em História e Psicologia. Doutor em Educação pela USP, é Diretor Presidente do Instituto UKA - Casa dos Saberes Ancestrais. Pelo seu trabalho, recebeu diversos prêmios, no Brasil e no exterior, como o Prêmio Jabuti, Prêmio da Academia Brasileira de Letras, Prêmio Érico Vanucci Mendes (CNPq) e Prêmio Tolerância (UNESCO). Muitos de seus livros receberam o selo Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil – FNLIJ.
 
 
 

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