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'Os índios são, sim, muito sofisticados', diz Cao Hamburger


Diretor fala sobre 'Xingu' filme que exibirá, dia 15, em Berlim

MARILIA NEUSTEIN - O Estado de S.Paulo
'Belo Monte é algo muito retrógrado e reacionário', diz Cao Hamburger - Paulo Giandalia/AE
Paulo Giandalia/AE
'Belo Monte é algo muito retrógrado e reacionário', diz Cao Hamburger
Cao Hamburger pouco conhecia sobre a história dos irmãos Villas-Bôas, quando recebeu proposta de Fernando Meirelles para fazer um filme sobre eles.

Na época (2008) o cineasta ficou um tanto reticente. Porém, depois de pesquisar sobre a vida dos sertanistas e a cultura indígena, topou o desafio. E foi de forma apaixonada e entusiasmante que o diretor contou à coluna sobre os bastidores de Xingu, longa-metragem recentemente selecionado para o Festival de Berlim. "Eu tinha medo de fazer uma coisa que ficasse muito nacionalista ou chapa-branca", explica. "Mas, depois de pesquisar sobre a vida deles e sobre o universo indígena, foi uma experiência transformadora".

A produção por si só, relata Cao, foi digna de uma aventura. Queimadas, carros atolados e até acidente aéreo (sem vítimas) assolaram a equipe, instalada entre o Tocantins e o Parque Nacional do Xingu. As dificuldades, no entanto, foram anestesiadas pela experiência de intercâmbio da equipe com os índios - que, inclusive, trabalharam nas filmagens, no elenco e na parte técnica: "Eles são muito evoluídos e sofisticados. Não deram muita bola para a evolução tecnológica, como a gente, mas evoluíram de uma outra maneira, que, para nós, é difícil de entender", conta.





A seguir, os melhores momentos da conversa.

Fazer um longa-metragem sobre os irmãos Villas-Bôas era um desejo antigo? 
Na verdade, não. Foi um presente. O filho do Orlando Villas-Bôas, Noel, procurou a O2 e o Fernando Meirelles. Ele nos mostrou que essa história estava se perdendo, que ninguém se lembrava mais do pai e dos tios. O Fernando leu o livro, se encantou e perguntou se eu me interessava.

Você aceitou de bate-pronto? 
A princípio, fiquei um pouco receoso, porque conhecia muito pouco da história deles. E tinha medo de fazer uma coisa que ficasse muito nacionalista ou chapa-branca. Então, fui pesquisar e também me encantei. Cada irmão com sua personalidade, a química entre eles, o lado humanista. Achei a história maravilhosa. Quando fui me aprofundar na pesquisa do universo indígena, foi uma experiência transformadora.

Como assim, transformadora? 
Difícil falar. Sempre pode soar um pouco místico. Então, não falo muito do que eu sinto, porque é meio difícil de explicar. Mas foi transformador no sentido de que, de certa forma, passei a enxergar o mundo por outra ótica. A cultura indígena é muito sofisticada. Diferentemente do que se fala no senso comum e preconceituoso - que eles são selvagens, que vivem pelados -, os índios são, sim, muito evoluídos e sofisticados. Não deram muita bola para a evolução tecnológica, como a gente. Evoluíram de outra maneira - que, para nós, é difícil de entender. Mas vai caindo a ficha e, quando você percebe, quer absorver o máximo que consegue da cultura deles.

Alguns índios participaram não só como atores, mas na produção do filme. Como foi essa experiência para vocês? 
Nós fomos muito bem recebidos pelos povos que moram no Xingu. E também por onde passamos, como, por exemplo, o Tocantins. Tivemos muito cuidado com essa aproximação. O projeto começou dois anos antes das filmagens: fomos três vezes ao parque antes de filmar. Muito do roteiro, inclusive, foi feito a partir de conversas com os povos indígenas. Queríamos que o filme tivesse muito o ponto de vista deles também. E isso deu aos índios uma confiança no filme que a gente estava fazendo. Eles se interessam muito. Alguns já tinham feito cursos de vídeo, oficinas. Já haviam tido contato com o mundo audiovisual. Então, aproveitamos para fazer esse intercâmbio.

Você acredita que falta informação sobre a cultura indígena? 
É um abandono completo. O mais chocante, para mim, foi perceber o preconceito que a sociedade brasileira nutre em relação à cultura indígena e contra os índios. A gente costuma dizer que o Brasil é um país aberto, que vivemos pacificamente, mas há um preconceito contra o índio e é profundamente cruel. Eles são discriminados em vários níveis. Sofrem preconceito racial e são até ameaçados. Muitas vezes, morrem.

Como você vê essa manifestação preconceituosa? Acho que, além de cruel e profundamente injusto, o preconceito é um grande desperdício. A cultura indígena, a meu ver, é um bem que o País tem. É uma maneira diferente de estar no mundo. Temos a prepotência de achar que o ser humano é o dono do planeta e superior, algo que os povos indígenas não têm.

E o que você acha da construção de Belo Monte? 
Acho que vai mexer no fluxo do rio Xingu, e esse rio, como todos que banham aquela região, é muito sensível. Se mexer lá, não sei como isso vai influenciar o habitat dos peixes, que são a principal fonte de alimentação dos povos do Xingu. Acho um retrato do que vem acontecendo com o Brasil desde 1500. Agora seria a hora de repensar o modelo de desenvolvimento que queremos e mudar esse paradigma. É algo muito retrógrado e reacionário. Tendo consequência direta, ou não, no parque, é um símbolo, porque o Xingu é essa luta pela contenção do poder destruidor da civilização. Então, é uma oportunidade que se perde de entrar no século 21 liderando um novo pensamento político, econômico e de desenvolvimento da humanidade e do planeta. Acho uma pena que não haja uma reflexão maior.

Você comentou que há no filme uma cena da Transamazônica...
É uma grande coincidência. No mesmo lugar onde está sendo construído Belo Monte tem uma cena, no filme, do presidente Médici, que foi o general do período mais duro da ditadura, inaugurando (no mesmo município) a placa que marcou o começo da construção da Transamazônica. Projeto que resultou em um completo fiasco. Foram rios de dinheiro jogados fora, muita floresta destruída, muitas doenças levadas aos povos locais, um desastre. Agora, no mesmo lugar, outra obra também faraônica.

O Noel Villas-Bôas chegou a interferir no filme? 
Não. Tivemos liberdade total. Ele não viu o filme nem leu o roteiro. Ele e dona Marina (mulher de Orlando Villas-Bôas) abriram o arquivo da família. Mas também pesquisamos muito em campo. Falamos com pessoas que trabalharam com eles - médicos, sertanistas, peões.

O que, na sua opinião, representa o legado dos irmãos Villas-Bôas?
Apesar de eu sempre desconfiar muito dessa coisa de herói, concordo com a Elena Soarez, roteirista do filme, que costuma brincar: "Se você acha que o Brasil não tem heróis, venha assistir Xingu". E nós fizemos questão de mostrá-los, no filme, humanos, com todas as suas contradições, paixões e idiossincrasias. Esses são os verdadeiros heróis, não precisam ser idealizados.

E a escolha do elenco? 
Para fazer três irmãos é sempre difícil a escolha. Além dos atores serem bons, era preciso que fossem parecidos com os personagens e tivessem essa química de irmãos. Fiquei muito satisfeito, o trio é perfeito.

Qual é agora a sua expectativa para Berlim? 
Ver se os alemães vão se emocionar tanto quanto quem já viu o filme no Brasil.

E como é fazer cinema no Brasil hoje? 
Minha geração perdeu dez anos. Quando estávamos prontos para começar a fazer longas-metragens, nos anos 90, veio o Plano Collor, acabou com a Embrafilme e não pôs nada no lugar. Então, para nós, criticar os mecanismos atuais é muito difícil. Porque são os únicos que temos, e que permitiram nossa produção. Tem um esforço da classe e das políticas públicas para aperfeiçoar o mecanismo. Espero que melhore.

Você é cinéfilo? 
Gosto muito de cinema, mas também de TV. Fui criado com a televisão. A música do Arnaldo define bem: "A televisão me deixou burro, muito burro demais/agora todas as coisas que eu penso me parecem iguais", (risos). Isso é a minha geração escrita. Eu faço televisão e adoro. E não vejo nenhum problema em criar para ambas as linguagens. Uma coisa é complementar da outra.

Você assiste a reality shows?
Não. Inclusive não entendo qual é a graça e o destaque que esses programas têm na mídia e na vida das pessoas. Até acho que o reality pode ser um formato interessantes, mas esses que estão aí não me atraem.

Fale um pouco sobre seus projetos futuros. 
Estou desenvolvendo um longa sobre índios que, ainda hoje, nunca tiveram contato com a civilização. São chamados de isolados. É inacreditável - e me vi impelido a fazer esse filme.

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