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No escurinho da maloca, a estréia do documentário da música Baniwa

O filme chama-se Podáali: um documentário da música baniwa e foi exibido em noite de gala na Maloca Casa de Conhecimento, na comunidade de Itacoatiara-Mirim, na zona periurbana de São Gabriel da Cachoeira, noroeste amazônico. Seus autores são os cineastas indígenas estreantes Moisés Baniwa e Paulinho Baniwa

Enquanto o mestre Luis Laureano cuidava dos últimos preparativos para a grande noite de estreia na Maloca Casa de Conhecimento, Luzia, sua esposa, circulava elegantemente com cuias de caxiri de cará e macaxeira, distribuindo-as aos parentes que vieram para ajudar na finalização de um dos últimos detalhes que faltavam: a pintura da parede da maloca. Lá dentro, Moisés Baniwa, o filho mais novo de Luis e Luzia, testava os equipamentos para que a projeção saísse perfeita.

Luzia serve caxiri na cuia a mestre Laureano e aos parentes que vieram ajudar



Maloca Casa de Conhecimento, em Itacoatiara-mirim, no dia da estreia


Assim, na noite da última sexta-feira (4 de novembro) estreou Podáali: um documentário da música baniwa, dirigido pelos estreantes cineastas indígenas Moisés Baniwa e Paulinho Baniwa. E reuniu cerca de 180 pessoas entre jovens indígenas, amigos e autoridades da região na imponente maloca que Luis e sua família ergueram na comunidade de Itacoatiara-mirim, e que tornou-se um ícone da vida cultural de São Gabriel da Cachoeira.
Para se ter uma ideia, logo depois da primeira inauguração, já passaram pela Maloca Casa de Conhecimento, os mais renomados pajés em atividade do Alto Rio Negro, importantes lideranças e intelectuais indígenas, além de autoridades não-indígenas como os antropólogos Eduardo Viveiros de Castro e Manuela Carneiro da Cunha, o chef Alex Atala, o empresário e candidato a vice-presidente de Marina Silva, Guilherme Leal e, recentemente, Gilberto Gil, também gravando um documentário. (saiba mais).

Cena de uma das festas realizadas na maloca, por onde já passaram ilustres convidados


O "segredo" das flautas enterradas
Podáali narra o processo virtuoso que a comunidade vem experimentando desde que decidiu retomar e valorizar práticas que s´po se materializaram com a construção da maloca. Tanto os anciãos quanto os jovens da comunidade se deram conta de que, mesmo vivendo na periferia da cidade, a maloca e os conhecimentos que ela permite experimentar são fundamentais para o viver bem no mundo de hoje.
Nesse contexto, realizaram, em outubro de 2010, uma viagem de reencontro com objetos sagrados mencionados na literatura antropológica como flautas e trompetes Kowai (Jurupari) e chamados waferinaipeem língua baniwa (em português, ancestrais, antepassados, avós). A comunidade os havia deixado submersos em igarapés do Rio Ayari, a jusante do Alto Rio Negro, de onde partiram para a cidade de São Gabriel há 25 anos, depois do último ritual de iniciação que realizaram.
A viagem foi registrada pelos cineastas indígenas e inspirou boa parte do documentário. Um dos desafios da equipe esteve relacionado ao “segredo” que envolve o som e a imagem das flautas, que são proibidas sobretudo para as mulheres baniwa e de outras etnias do Rio Negro. Raríssimos são seus registros sonoros. Durante a expedição ao Ayari foi preciso obedecer a um conjunto rigoroso de regras previamente acordadas entre todos em reuniões de planejamento que aconteceram na Maloca Casa de Conhecimento. (saiba mais aqui). (veja também).
Para Deise Lucy, etnomusicóloga do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Amazonas e parceira da iniciativa o documentário e o projeto como um todo demonstram que“a maloca e as iniciativas que ela vem estimulando são uma forma de atualizar a presença desta comunidade baniwa no mundo, abrindo e reforçando canais de comunicação e transmissão de conhecimentos numa dimensão vertical - no que diz respeito à relação com os ancestrais míticos e com as passagens dos ciclos de vida - e horizontal - no que diz respeito ao manejo das relações com os “outros”, com os parentes indígenas, e com o mundo dos brancos”.

Cerca de 180 convidados assistiram ao documentário na maloca


Depois de pelo menos 200 anos de forte repressão aos Baniwa, e aos outros 22 povos que vivem no Alto Rio Negro, a Maloca Casa de Conhecimento e as atividades que realiza vêm ganhando cada dia mais destaque entre as iniciativas de reafirmação e salvaguarda do patrimônio socioambiental dessa região, por estimular a música, os cantos, as danças, as narrativas, a cultura material e todo o universo sobre o qual ela atua. Tudo isso em intenso diálogo com o universo cultural mais amplo, incluindo o mundo dos brancos e de São Gabriel da Cachoeira, considerada a cidade mais indígena do Brasil.
Vídeo de Maloca
O processo de filmagem do documentário foi inspirado na iniciativa do Vídeo nas Aldeias, que prepara cineastas indígenas para a atividade audiovisual há pelo menos 25 anos no Brasil. Pedro Portella, um dos colaboradores do Vídeo nas Aldeias apoiou na definição de equipamentos e coordenou a primeira Oficina de Linguagem e Técnica Cinematográfica, sendo seguido por Petrônio Lorena, cineasta que se hospedou por uma longa temporada na Maloca Casa de Conhecimento em 2009, para compartilhar seus conhecimentos sobre cinema com os Baniwa.

Moisés Baniwa verifica todos os equipamentos para que a projeção saia perfeita


Para completar o time de formadores, duas oficinas de edição foram coordenadas pelo fotógrafo e pesquisador Hans Denis Schneider. O resultado do investimento em formação que o projeto trouxe pode ser percebido no dia-a-dia de eventos importantes que acontecem em São Gabriel da Cachoeira, onde Moisés e Paulinho se destacam realizando a cobertura áudiovisual. Para os jovens cineastas baniwa “agora é seguir gravando novos documentários e preparando outros parentes para a atividade aqui no Alto Rio Negro”. Ambos criaram a Vídeo de Maloca Produções, produtora pela qual pretendem transformar o documentário num longa-metragem, incorporando um farto e importante material não utilizado nesta montagem de estreia, de 30 minutos. E já estão em busca de patrocinadores.
Mestre Luis Laureano abriu e encerrou a noite agradecendo a todos que colaboraram, em especial a Petrobras, através do Programa Petrobras Cultural (edição 2006/2007), patrocinador oficial da iniciativa até o final de 2011. O projeto é realizado pela Foirn (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro) e ACICC (Associação Cultural Indígena Casa de Conhecimento) e conta com a parceria do ISA (Instituto Socioambiental) e da Ufam (Universidade Federal do Amazonas) além de vários apoiadores individuais que conheceram o projeto e se sensibilizaram com ele.

ISA, Adeilson Lopes da Silva.

Comentários

  1. Querido Daniel,

    Escrevo para contar que seus livros Kabá-darebu, Coisas de ìndio e Histórias de índio, inspiraram meu grupo de teatro a fazer uma contação de histórias encenada aqui em São Carlos/SP.
    Agora estamos adaptando a encenação para fazer uma apresentação para cegos antes do fim do ano. Como estamos trabalhando com a linguagem do palhaço a peça ficou se chamando "Cara Pálida e Nariz Vermelho".
    Nosso grupo também tem um blog e esperamos logo mais postar novidades:
    http://teatrodescalco.wordpress.com/
    Fico muito contente cada vez que entro no seu blog e vejo que está cada vez melhor, fico muito contente cada vez que leio (ou releio) um livro seu e fico bem feliz de contribuir incentivando mais pessoas a lerem o que você escreve.
    Um abraço bem grande!
    Daniela Soledade

    ResponderExcluir
  2. Obrigado, Daniela, por partilhar conosco esta iniciativa.
    Creio que esse é o caminho para levarmos a sabedoria indígena para todos os cantos e pessoas.
    Sucesso sempre para você e seu grupo de teatro.
    Mandem notícias sempre!
    Daniel Munduruku

    ResponderExcluir

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