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Letras indígenas: arma para preservar culturas ancestrais

Enviado por Rachel Bertol -15/6/2009-7:00
Publicado no Blog do O Globo

Karú é o nome de um menino, em seu povo, escolhido para ser pajé. Tem entre 9 e 10 anos, e se pergunta o motivo de ter sido o escolhido. "Karú Tarú" (Edelbra), livro que o escritor indígena Daniel Munduruku lança no Salão FNLIJ do Livro para Crianças e Jovens, traz à tona os questionamentos do garoto. Mas se trata de uma criança indígena dos tempos atuais: que vê TV, domina o português e tem muitas vezes acesso a outros tipos de vida, como a das cidades - enfim, um índio que não se encontra mais isolado em sua aldeia como ainda supõe o clichê. Algo que persiste porque não se assimilou plenamente a ideia de que muitos indígenas, cultos ou não, podem viver entre os não indígenas trazendo as marcas de duas culturas, a da civilização Ocidental e a de seus povos ancestrais.

O próprio Munduruku é um exemplo dessa realidade. É formado em filosofia e, casado com uma não índia, vive em Lorena (SP) com os três filhos. Quando começou a escrever, não pensava, necessariamente, no público infantil, mas reconhece que seu interesse em educação - atualmente, faz doutorado em Educação na USP - pode ter contribuído para que seus livros acabassem se destinando, sobretudo, aos jovens leitores. Quase todos os seus livros se relacionam à cultura indígena.

- Eu nunca me defini como um autor de livros para criança, mas escrevo fácil. Para criança, jovem, adulto. Tenho algo ligado à educação na minha fala, e meu trabalho acabou se reportando mais às crianças, que acabam tendo mais acesso a ele. Mas boa parte do que escrevo continua a ser feito para um público geral - contou Munduruku em entrevista telefônica, realizada pouco antes da sua vinda para o Rio para participar, esta semana, do Salão FNLIJ para Crianças e Jovens, que acontece até o dia 21 no Centro Cultural da Ação da Cidadania, na Saúde.

Há seis anos, Munduruku organiza no Salão um encontro com outros autores indígenas, que, com o apoio do Instituto C&A, recebe este ano cerca de 30 pessoas, um número recorde. Esse sexto encontro, que tem como título "Oralidade indígena e novas tecnologias da memória", que acontecerá no Salão no dia 17, vai se desdobrar em diferentes atividades na cidade. Nesta segunda-feira, dia 15, haverá um encontro inédito na Academia Brasileira de Letras (ABL), às 17h (aberto ao público), que deixa Munduruku especialmente animado. Há uma possibilidade de que façam na Casa de Machado de Assis o ritual com que costumam abrir o Encontro no Salão.

- Fazemos uma roda, cantamos, batemos pé, na abertura e no encerramento do evento - conta Munduruku.

Em debate esta tarde, a questão da oralidade, marca da cultura indígena, face às novas experiências da escrita. Se havia suspeitas de que a escrita pudesse matar a oralidade, Munduruku acredita que, ao contrário, trata-se de uma forma de realimentá-la e, hoje em dia, uma maneira inevitável de preservar culturas e sensibilidades que, como ele observa, poderiam ter sido extintas há muito tempo.

- Vou usar uma palavra feia, mas que é fato. O fato é que nós somos vítimas. Fomos vítimas do sistema educativo e político. Fomos obrigados a ir para a escola, não era algo que queríamos. Mas acabou sendo positivo. O Estado queria apagar as nossas identidades, nesse processo houve muitas baixas, mas também permitiu que a gente pudesse usar o que aprendeu a nosso favor. É como se usássemos a arma a nosso favor - conta Munduruku.

Outros eventos em que os indígenas - que vieram de todos os cantos do país - estarão presentes, esta semana no Rio, são: nesta segunda, 15, das 9h às 15h, acontecem na UFRJ (segundo andar da reitoria; Av Pedro Calmon 550, Cidade Universitária) oficinas de grafismo e contação de histórias. Terça-feira, 16, no mesmo local, haverá de 9h às 11h30m, a roda "Catando piolhos, contando histórias". Dia 17, às 9h, será o dia dos debates no Salão do Livro para Crianças e Jovens. Na quinta-feira, 18, novo seminário será realizado, desta vez na Uerj, às 19h.

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