Pular para o conteúdo principal

Uma feira de livro, uma memória, uma esperança.


Por Daniel Munduruku

Estive em Belém na ultima semana participando da XII Feira Pan-Amazônica do Livro. Fui participar de um seminário sobre Literatura Indígena junto com dois amigo queridos: Yaguarê Yamã e Graça Graúna (comigo no Museu Emílio Goeldi).
Foi um evento muito rico. Segundo os organizadores foram mais de 40 mil pessoas por dia. E eu posso dizer que fiquei muito impressionado com a quantidade de gente que se punha a caminhar entre as ruas literárias do Hangar, um centro de convenções maravilhoso construído na capital paraense.
Encontrei alguns amigos famosos caminhando pela feira: Ariano Suassuna, Rubem Alves, Marina Colassanti. Tive a alegria de ouvir Gabriel O Pensador conversando com um público jovem atento e me senti privilegiado por estar participando de um evento que une juventude e experiência numa rica troca de impressões.
Nos intervalos revisitei alguns pontos turísticos de minha cidade natal e vi como ela cresceu e está muito atenta ao crescimento aliado à preservação. Isso, claro, dentro da capital, pois sei que o governo estadual anda deixando a desejar em seu projeto político.
Nessa época do ano há um renovado ardor religioso presente na cidade. Isso acontece por conta da aproximação das festividades do Círio de Nazaré. As casas, lojas e ruas estão enfeitadas. Mesmo as repartições públicas celebram este momento grandioso da fé do paraense. Este ano o Círio irá acontecer no dia 12 de outubro, segundo domingo do mês.
Por conta das festividades os paraenses estão preparando a rica culinária local: maniçoba (uma espécie de feijoada que substitui o feijão pela folha da mandioca), pato-no-tucupi, vatapá, caruru. Durante os próximos dias as famílias irão se reunir para decidir quais iguarias serão preparadas para aguardar a passagem da Santa de Nazaré. Isso resolvido todos porão a mão na massa para providenciar cada ingrediente, sempre vendido na famosa feira do Ver-O-Peso.
No dia 12, enquanto centenas de milhares de pessoas caminham pelas ruas da cidade em procissão e outros milhares se agarram às cordas que cercam a berlinda da santa na esperança de arrancar-lhe um milagre, famílias se juntarão em torno de uma mesa para celebrar a fé e a cultura de seu próprio povo. Fico feliz por ser paraense!
Uma outra coisa que me chamou atenção foi o fato de a cultura marajoara estar muito presente no cotidiano das pessoas: seja nos ônibus urbanos, nos outdoors espalhados pela cidade; seja no grafismo das camisetas ou nos artesanatos locais; seja no colorido das calçadas públicas ou nos automóveis, o povo paraense sabe valorizar cada traço de sua cultura ancestral (o que não significa que o estado do Pará seja bom no tratamento dos povos indígenas locais). O fato é que conseguem “fechar” uma identidade única no país.
Este traço da cultura é muito perceptível na música regional paraense. Os artistas locais cantam as belezas que o lugar possui. Cantam os rios, as lendas, a floresta, os habitantes, os artesanatos, enfim, cantam sua gente e sua cultura. É claro que isso faz com que estas músicas acabem ficando conhecidas apenas localmente, mas isso não os perturba. Fenômenos como a Banda Calypso, Fafá de Belém ou Beto Barbosa são feitos raros. Qual paulista ou carioca conhece a belíssima música de Nilson Chaves ou as cantatas do maestro Valdemar Henrique? Poucos... muito poucos.
A literatura paraense segue quase o mesmo ritmo da música: na maioria das vezes se concentra nos regionalismos folclóricos do Boto, da Mula-sem-Cabeça, da Cobra-Grande, do Uirapuru, entre outros. Estes temas sempre chegam aos grandes centros, mas normalmente são tratados de modo superficial e não conseguem ultrapassar as esferas mentais dos moradores do centro-sul brasileiro. Há, no entanto, uma produção literária paraense que é rica e que precisa ultrapassar as fronteiras para alimentar nossa imaginação nestes outros centros. Talvez as feiras de livro pudessem, ao invés de homenagearem outros países, mostrar a riqueza que os estados brasileiros produzem, especialmente literariamente.
Enfim, adorei voltar ao Pará. Gostei de ser convidado a participar de uma feira no lugar onde cresci e onde, antes, não havia nenhum incentivo à leitura. Tenho mais esperança em meu Estado. Quem sabe ele poderá tornar-se um estado de espírito para todos que o visitam.

Comentários

  1. Com certeza a sua visita no Colégio N. S. de Lourdes não será esquecida. Ficará na nossa lembrança. Com muita atenção e carinho os alunos estão lendo suas obras, pois estão cheios de curiosidades. Obrigada pela ajuda nesta tarefa de estimular os alunos a ler por prazer. Há uma esperança de fazer os jovens lerem não só por obrigação, mas por divertimento. Juntos poderemos fazer a semente germinar. Sucesso nesta caminhada de divulgação da cultura indígena. Suas palavras foram encantadoras. Abraços

    ResponderExcluir
  2. Olá, Daniel!
    Trio de OURO, isso sim! Tenho certeza de que brilharam na feira.
    Muito interessante sua idéia de homenagear a cultura nacional nas festas literárias, os estrangeiros viriam como convidados.
    Abraços.

    ResponderExcluir
  3. Dani: gostei da maneira como a Fatima Campilho se referiu a mim, a você e ao Yaguarê - um trio de ouro. Que maravilha! Bateu uma saudade...!!! Na luta pelo reconhecimento da nossa literatura indígena, deixo meu abraço. Paz em Nhande Rú.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

A FORÇA DE UM APELIDO

A força de um apelido [Daniel Munduruku] O menino chegou à escola da cidade grande um pouco desajeitado. Vinha da zona rural e trazia em seu rosto a marca de sua gente da floresta. Vestia um uniforme que parecia um pouco apertado para seu corpanzil protuberante. Não estava nada confortável naquela roupa com a qual parecia não ter nenhuma intimidade. A escola era para ele algo estranho que ele tinha ouvido apenas falar. Havia sido obrigado a ir e ainda que argumentasse que não queria estudar, seus pais o convenceram dizendo que seria bom para ele. Acreditou nas palavras dos pais e se deixou levar pela certeza de dias melhores. Dias melhores virão, ele ouvira dizer muitas vezes. Ele duvidava disso. Teria que enfrentar o desafio de ir para a escola ainda que preferisse ficar em sua aldeia correndo, brincando, subindo nas árvores, coletando frutas ou plantando mandioca. O que ele poderia aprender ali? Os dias que antecederam o primeiro dia de aula foram os mais difíceis. Sobre s...

MINHA VÓ FOI PEGA A LAÇO

MINHA VÓ FOI PEGA A LAÇO Pode parecer estranho, mas já ouvi tantas vezes esta afirmação que já até me acostumei a ela. Em quase todos os lugares onde chego alguém vem logo afirmando isso. É como uma senha para se aproximar de mim ou tentar criar um elo de comunicação comigo. Quase sempre fico sem ter o que dizer à pessoa que chega dessa maneira. É que eu acho bem estranho que alguém use este recurso de forma consciente acreditando que é algo digno ter uma avó que foi pega a laço por quem quer que seja. - Você sabia que eu também tenho um pezinho na aldeia? – ele diz. - Todo brasileiro legítimo – tirando os que são filhos de pais estrangeiros que moram no Brasil – tem um pé na aldeia e outro na senzala – eu digo brincando. - Eu tenho sangue índio na minha veia porque meu pai conta que sua mãe, minha avó, era uma “bugre” legítima – ele diz tentando me causar reação. - Verdade? – ironizo para descontrair. - Ele diz que meu avô era um desbravador do sertão e que um dia topou...

HOJE ACORDEI BEIJA FLOR

(Daniel Munduruku) Hoje  vi um  beija   flor  assentado no batente de minha janela. Ele riu para mim com suas asas a mil. Pensei nas palavras de minha avó: “ Beija - flor  é bicho que liga o mundo de cá com o mundo de lá. É mensageiro das notícias dos céus. Aquele-que-tudo-pode fez deles seres ligeiros para que pudessem levar notícias para seus escolhidos. Quando a gente dorme pra sempre, acorda  beija - flor .” Foto Antonio Carlos Ferreira Banavita Achava vovó estranha quando assim falava. Parecia que não pensava direito! Mamãe diz que é por causa da idade. Vovó já está doente faz tempo. Mas eu sempre achei bonito o jeito dela contar histórias. Diz coisas bonitas, de tempos antigos. Eu gostava de ficar ouvindo. Ela sempre começava assim: “Tininha, há um mundo dentro da gente. Esse mundo sai quando a gente abre o coração”...e contava coisas que ela tinha vivido...e contava coisas de papai e mamãe...e contava coisas de  hoje ...