PARA ALÉM DA PANDEMIA

Tenho sido abordado várias vezes sobre o que penso sobre a pandemia e como ela impacta na vida dos povos indígenas. Nunca tenho resposta pronta para isso ou para qualquer coisa que seja. Gosto de praticar o livre pensar. É isso que farei agora.

Já faz algum tempo que há “profecias” que nos são lembradas. Quer dizer, são antigas falas de sábios indígenas que foram repetidas muitas vezes e chegaram até nós com essa descrição de serem leituras do futuro. Quando falamos em profecias normalmente estamos pensando que alguém do passado previu algo para o futuro. Quase nunca passa pela cabeça das pessoas que “prever” o futuro é a coisa mais simples do mundo: o “futuro” se escreve no presente. Trata-se puramente de observação da natureza.

Lembro que quando aconteceu o inacreditável tsunami em 2004, as populações originárias das ilhas afetadas não sofreram quaisquer danos. Por quê? A natureza os avisou com antecedência. Foi apresentando sinais visíveis de que um acontecimento natural iria ocorrer. Dias antes, levas inteiras de formigas se deslocaram para a parte mais alta das ilhas. As pessoas, atentas ao sinal da natureza, perceberam a movimentação e acompanharam-nas ficando a salvo da onda gigante. Este é apenas um exemplo do que pode ser uma “profecia”.  

Desde a chegada dos europeus em terras brasileiras a natureza foi sendo modificada. Vozes ancestrais foram registradas por viajantes e missionários. Elas perguntavam sobre a voracidade deles em querer acumular bens e riquezas. Essa gente não entendia o motivo de tanta ganância estampada nos olhos daqueles estrangeiros que não davam a mínima importância a elas ou à sua sabedoria. Tudo o que queriam era extrair riquezas, usurpar, trapacear.

Já àquela época se ouvia da boca dos sábios que um dia a natureza ia se vingar. A história do Brasil é feita dessas “profecias”. Elas estavam presentes como fonte de resistência para que os guerreiros e guerreiras não desistissem de lutar. Uma terra sem males havia de existir para além da opressão, da escravização e da morte.

José Luiz Xavante deixou sua “profecia” estampada na frase: “O branco não sabe o que é natureza, o que é o rio, o que são as árvores, o que é a montanha, o que é o mar. Ao invés de você respeitar, destrói, corta pedaço, joga coisas, polui os rios (...). Por que você está estudando? Para destruir a natureza e, no fim, destruir a própria vida?

A coisa é tão óbvia que nem precisa ter muita ciência para perceber que se a natureza for destruída todos também seremos. E é isso que vem sendo dito por todos os sábios de nossos povos. Não precisa ser profeta para “sacar” que faz tempo que a humanidade está se autodestruindo; que o atual sistema econômico que privilegia o consumo desenfreado, o acúmulo exagerado, a concentração de renda nas mãos de poucos, vai ruir. A própria resistência indígena ao sistema de consumo tem sido o portal para a compreensão de que a humanidade está no caminho da destruição.

Não gosto de ser o profeta do apocalipse, mas acredito que nada vai mudar depois desta pandemia. Ao contrário, acho que vai piorar. Justamente porque o sistema irá sentir-se ameaçado e que vai entrar com todas as armas para se retroalimentar. As perseguições irão aumentar; as novas propostas de lei para a exploração mineral serão apresentadas na surdina; os direitos constitucionais serão questionados em nome da economia; as políticas públicas de inclusão social retrocederão; as bolsas para pesquisadores indígenas e manutenção de estudantes nas universidades serão canceladas e por aí vai. Definitivamente, a humanidade brasileira sairá mais enfraquecida no pós-pandemia. A ideia do progresso e desenvolvimento virão com mais força e aqueles que estiverem contra tudo isso serão acusados e desqualificados recaindo sobre eles os estereótipos e preconceitos que os acompanham secularmente em nosso país.

Confesso que não queria que fosse assim. Até posso alimentar a esperança de que parte da sociedade brasileira irá se organizar para reagir e dar uma resposta contrária a essa situação; gostaria de ver a juventude se articulando para não permitir que seu “futuro” fosse estruturalmente modificado. Até desejaria que crianças se organizassem para gritar bem alto que desejam ter árvores e florestas em pé quando se tornassem adultas e pudessem escolher o que lhes parece melhor para si e para seus pares.

Eu queria, mas não sou profeta para garantir que isso irá de fato, acontecer. O que me resta, como viajante do tempo presente, é lutar para que o amanhã seja menos cruel e mais poético e que possa receber nossas crianças e jovens de braços abertos.


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