Literatura x literatura indígena: consenso?
Literatura x literatura indígena:
consenso?
A produção de literatura dos indígenas brasileiros
POR DANIEL MUNDURUKU
Tenho ouvido com toda atenção os puxões de orelhas
levados de amigos escritores e de universidades questionando o fato de
denominar literatura indígena aos escritos literários de autores nativos.
Nossos interlocutores alegam que o que se escreve, sendo literatura, literatura
é. Não precisaria, pois, colocar o qualificativo para indicar a origem de quem
escreve. O texto literário falaria por si só.
Há também a alegação de que isso cria certo
segregacionismo reforçando a separação entre os membros de uma mesma sociedade,
no caso, brasileira. Dizer que uma literatura é indígena ou negra; branca ou
judia; oriental ou ocidental levaria as pessoas a criar uma reserva com relação
à qualidade do que se produz. Seria algo como falar do “politicamente correto”
criando preconceitos e reforçando estereótipos.
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A finalidade deste texto não é rebater essas críticas
ou reflexões realizadas por amigos ou simpatizantes, mas colocar um pouco de
lenha na fogueira, apimentar o tucupi.
Confesso que fico incomodado quando alguém me diz que
eu deveria abandonar a expressão "indígena" na literatura que escrevo
[se é que faço literatura mesmo]. Isso me lembra uma questão muito comum que
vez ou outra volta ao cenário. Há pessoas que dizem que sou “um índio que deu
certo”. Outras pensam, mas não dizem. Isso me faz pensar muito no nível de
compreensão que a sociedade brasileira tem sobre si mesma e sobre o papel dos
indígenas na formação de sua identidade. E quando ouço uma “bomba” dessas,
sempre acho que o Brasil ainda não chegou lá... e, pior, acho que não vai
chegar nunca!
Sem entrar nos detalhes já que não sou especialista na
matéria, entendo que a história da literatura brasileira passou por diferentes
fases e quase todas elas receberam denominações que ora apresentavam
especificações regionais e rurais, ora urbanas. Elas sempre foram formas de fixar
determinados conceitos ou apresentar características sui generis para um
movimento que queria se distanciar do anterior. Surgiam expoentes que aceitavam
escrever submetendo suas criações a um modelo x ou y. A cultura literária
acabava por aceitar isso como uma forma de mudança necessária para o
crescimento da própria literatura nacional. Ainda hoje é assim. E, além disso,
não se pode esquecer que a própria literatura foi usada como instrumento de
reverberação de ideias. Ideologias utilizavam os estilos literários para passar
suas crenças numa ou noutra sociedade sonhada.
Lembro aqui, ainda, que o indigenismo de José de
Alencar foi uma “encomenda” do imperador dom Pedro II, que desejava criar uma
identidade para um país que era dependente de Portugal e do qual queria se
distanciar. A “leitura” que Alencar propôs encontrou na cultura indígena um
componente fundante para essa identidade. Daí as pérolas literárias por ele
criadas e que embalaram o ser brasileiro por anos a fio. Tais pérolas só foram
questionadas pelo antropofagismo de Oswald de Andrade – e de um grupo de
literatos e artistas – que propunha uma leitura múltipla dessa mesma identidade
nacional. Macunaíma é um bom exemplo [na mitologia indígena de Roraima,
Macunaima – sem acento – é um ente legislador que nada tem a ver com a versão
literária de Mario de Andrade].
A antropologia também teve sua parcela de contribuição
nessa releitura identitária. Foi o árduo trabalho do Marechal Cândido Mariano
Rondon – de descendência bororo – que fez o país conhecer uma parte de seu
território ainda desconhecida. Ele abriu a “clareira” para que a literatura
tivesse novos horizontes para pensar o passado nacional. E aqui cabe uma
pergunta: será que a literatura soube lidar com esta novidade de forma
satisfatória? A resposta fica a critério de quem está lendo este artigo, mas se
imaginarmos o lamentável equívoco que ainda hoje se repete em nossas escolas, a
resposta não poderia ser positiva. Mesmo lembrando os heroicos trabalhos dos
pesquisadores brasileiros – ou indigenistas do porte dos irmãos Villas-Bôas –
em apresentar à sociedade a realidade dos povos indígenas, a literatura
preferiu ficar em seu lugar comum reproduzindo estereótipos e conceitos
ultrapassados.
Ainda que lembremos de Darcy Ribeiro – brasileiro marrento
e idealista – que em todas suas áreas de atuação [universidade, política,
educação, literatura] sempre alertou a sociedade nacional para a leviandade que
se estava cometendo contra os indígenas, mesmo assim a literatura tem ignorado
essas contribuições e alimentado uma visão folclórica e antiga sobre nossa
gente.
A literatura que os autores indígenas estão criando é
nova sim. Traz um olhar sobre suas próprias sociedades e culturas. Traz um viés
particular – embora, às vezes, contaminado pela cultura branca, europeia –
capaz de confirmar e reafirmar suas identidades distanciando-os do conceito
cínico do “ser brasileiro com muito orgulho e com muito amor”, cantado nos
estádios de futebol. É uma literatura autenticamente brasileira – no sentido do
pertencimento ao lugar onde se vive e no qual se enterra seus mortos. É uma
literatura – na falta de um termo melhor – que está além da própria literatura,
já que não faz distinção dos jeitos como ela é produzida.
http://tematicaindigena.blogspot.com.br/ |
Nossos escritos são literaturas, sim. E são indígenas,
sim. Não há motivo para negar isso e menos ainda para partilhar com os
escritores não-indígenas o merecimento que nosso esforço tem conseguido em tão
pouco tempo. Dizer que o que escrevemos é “apenas” literatura brasileira, é
dividir com todos aqueles que escreveram, escrevem e escreverão coisas
medíocres a respeito de nossa gente, um status que não foi construído por eles.
Nossa literatura é indígena para que não se venha repetir que “somos os índios
que deram certo”
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