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Brasileiro nativo, índio por apelido, bugres JAMAIS!

Wilson Matos da Silva*

Nas palavras do presidente da Federação Indígena Brasileira (FIB), Alfredo Wapixana: "Nascer índio no Brasil é adquirir como certidão de batismo, a pecha de bugre e indolente, é mais um a aumentar a fileira dos que só querem ter direitos e não deveres é empecilho (estorvar embaraçar) ao progresso da "civilização". É assim que a sociedade percebe os povos indígenas".
O espírito de um capitalismo saqueador e aventureiro do colonizador português confrontou-se com as idéias e vivências das nossas tribos indígenas em relação ao trabalho e ao que disto decorre, o que significou um abismo cultural. Essa percepção errônea se traduz em reações sistemáticas de discriminação em todos os aspectos, condenando-nos assim, ao ostracismo e ao degredo coletivo.
Sobre o termo "BUGRE" leciono: A origem da palavra vem do francês bougre, que de acordo com o dicionário Houaiss possui o primeiro registro no ano de 1172 e significa ‘herético’, que por sua vez vem do latim medieval (século VI) bulgàrus. Como membros da igreja greco-ortodoxa, os búlgaros foram considerados heréticos, e o emprego do vocábulo para denotar a pessoa indígena liga-se à idéia de ‘inculto, selvático, não cristão’ - uma noção de forte valor pejorativo.
O termo bugre originou-se num movimento herético, na Europa, durante a Idade Média, representando uma força contrária aos preceitos ditados pela ortodoxia da Igreja. Surgiu no século IX, na Bulgária, tendo sido batizado como bogomilismo, inspirado no nome do padre Bogomil, considerado fundador da seita herética.
O ‘bugre’ vai reaparecendo na lembrança do europeu, com uma identidade já construída, acompanhando a idéia da infidelidade moral, porém com novos elementos, próprios da nova situação. Os bugres surgiram de uma sociedade muito fechada e de fundamentação radicalmente religiosa. Não parece verossímil uma história tão complexa e antiga para um personagem alcunhado e tratado, hoje, em diversas cidades do Brasil, como "João-Ninguém".
Fica claro que o termo é pejorativo, para identificar aqueles que apresentam alguns traços físicos específicos - "cabelo de flecha, liso, escorrido"; "olho rasgado, nariz meio achatado"; "escuro sem ser negro" - que estão associados a aspectos culturais, sociais, psíquicos e econômicos também específicos: "o bugre é rústico, atrasado"; "o bugre verdadeiro é do mato, aquele que está escondido, mais agressivo e arredio"; "o bugre que está na cidade é mais dócil, pode ser trabalhador, mas é traiçoeiro".
No MS, a presença recente dos migrantes (paulistas, mineiros, paranaenses, gaúchos, desde a década de 70, principalmente) despertou um sentimento de fragilidade perante os valores tradicionais autoritários. Esta insegurança, este medo, esta angústia manifestam-se, dentre outras formas, na retomada do preconceito contra o índio, que figura como bugre/bode expiatório para tudo o que é tido como negativo, indesejável e condenável.
O termo tem significado de herege e sodomita desqualificação absoluta; as significações de infiel e traiçoeiro somadas às modernas práticas econômicas e políticas da modernidade, encontram-se os pares preguiçoso-vagabundo e estrangeiro-inteiramente outro. Daí deriva uma matriz biológica - deficiente-incapaz e violento-desordeiro - também presentes no imaginário sobre o bugre na sociedade brasileira.
O bugre não será visto como o modelo de homem do novo tempo; muito pelo contrário, existe uma imagem central negativa, de acusação, sobre o indígena quando somos tratados como bugres. Qual o porquê de a sociedade ter a necessidade de construir imagens negativas sobre nós os índios? Quais as conseqüências que estas imagens trazem para a vida cotidiana de uma sociedade?
Como dito, nós os índios não somos coitadinhos; Se tem alguém forasteiro neste solo, não somos nós os índios! Nossos povos são nativos deste chão. Só queremos respeito com a nossa dignidade! E, NÃO, MIL VEZES NÃO! Não somo bugres!!!

*É índio, advogado e jornalista, coordenador regional do Observatório Nacional de Direitos indígenas (ODIN), Presidente da Comissão de Assuntos Indígenas da OAB 4ª Subseção Dourados matosadv@yahoo.com.br

Fonte: Jornal O Progresso

Comentários

  1. Wilson Matos da Silva, índio, advogado e jornalista, quero como professora, pedagoga, educadora índio-descendente me alinhar na luta por respeito e dignidade aos povos indígenas desse país. Sinto-me honrada por ler textos como este neste blog. E feliz por não estar sozinha no meu modo de viver e pensar a minha ancestralidade.Índia, presente!!!

    Um abraço.


    Valdiva(filha e neta de indígenas, com muito orgulho)

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