ENTREVISTA PARA A REVISTA RAIZ.

1. Quando você começou a escrever livros? Em 1996 foi lançado meu primeiro livro com o nome Histórias de Índio pela Companhia das Letrinhas.
2. Como anda a situação da literatura indígena no país?
Avançou assustadoramente. Há hoje uma demanda muito grande por textos de autores indígenas. Esse boom nos pegou, inclusive, desprevenidos porque não temos autores suficientes para dar vazão a toda esta demanda.
Infelizmente alguns parentes indígenas ainda não conseguem visualizar a importância do papel da literatura para o desenvolvimento de nossa visão de mundo. Creio que isso ainda vá demorar um pouco. Neste sentido, criamos o núcleo de escritores e artistas indígenas. Nosso objetivo é formar um quadro de profissionais que possam responder com responsabilidade a este tipo de demanda social.
3. Quais são os grandes escritores indígenas na sua opinião. E como eles têm conseguido exercer essa função?
Há dois grupos de escritores indígenas: 1) os que estão criando uma literatura de ficção baseada na sua experiência de aldeia; 2) os que são memorialistas no sentido de que estão escrevendo coisas a partir da memória tradicional de sua gente. Os dois grupos são fundamentais para o desenvolvimento da literatura indígena. É claro que há escritores que transitam pelos dois grupos com muita tranqüilidade e outros ainda estão num processo de aprendizagem da linguagem escrita o que os limita um pouco, mas certamente irão brilhar futuramente.
Vale dizer também que alguns indígenas se destacam mais pelo domínio da linguagem oral e são excelentes oradores. Isso os torna também pessoas especiais, pois acabam alimentando aqueles que escrevem.
4. E quais são as dificuldades que um escritor indígena encontra hoje, para seguir a sua carreira? Tem que ficar claro que a escrita é uma ferramenta nova para a maioria dos autores indígenas. Muitos já falam o português há muito tempo, mas não dominavam a escrita. Ora, se é difícil e complicado para quem domina a língua portuguesa imagine para quem tem começar bem do comecinho? Portanto há dificuldades inerentes ao domínio dos estilos narrativos, da gramática, do mercado livreiro, do conhecimento de editoria, etc. Publicar um livro pode parecer fácil à primeira vista, mas tornar este livro conhecido e aceito pela sociedade é muito difícil. Há uma vantagem para os autores indígenas, no entanto, que é a demanda pela temática que foi iniciada por alguns escritores há algum tempo atrás.
5. Por que você escolheu, ou foi escolhido, ser um porta-voz, defensor da cultura indígena? Qual é a sua missão! Qual é a sua busca?
Não me considero um avatar ou coisa parecida. Talvez eu tenha nascido com um talento, um dom que é escrever. Isso eu só descobri depois de muito tempo. Eu sempre me senti educador. Minha paixão era a escola, a educação. Nunca havia me imaginado escritor e nem tinha certeza de que sabia escrever. Só com o passar dos anos é que fui percebendo que tinha recebido esta “missão”. Também não sou porta-voz de ninguém ou de algum povo. Sinto-me pertencente de uma teia onde cada fio faz diferença. Estou tentando fazer a diferença dentro dessa área da escrita. Há muito e bons lideres fazendo bons trabalhos em outras áreas de atuação e isso muito me alegra. A minha busca se alimenta dos sonhos de contribuir para que o ser humano seja melhor; de que os povos indígenas possam viver com dignidade; de que não precisamos nos esconder ou ocultar a nossa identidade para sermos aceitos pela sociedade. É nisso que acredito e é isso que busco.
6. Qual é o seu próximo livro? Você pode nos contar um pouco?
Tenho muitos projetos de livros e alguns já prontos para serem editados. É difícil falar de um ou outro. Mas posso dizer que descobri que posso escrever sobre qualquer assunto utilizando um estilo que pode ser compreendido por crianças e jovens. Neste sentido estou escrevendo alguns livros que estão livres da temática indígena. São textos onde falo de valores humanos que ultrapassam fronteiras. Também estou para lançar meu primeiro título para o público adulto, uma espécie de viagem filosófica no coração da floresta amazônica. Tenho um projeto para dois livros informativos voltados para crianças pequenas. Estou organizando uma antologia de autores indígenas. Também irei coordenar uma coleção onde estarão autores indígenas de vários lugares do Brasil. E ainda faço o doutorado em educação na Universidade de São Paulo, ministro cursos, dou palestras pelo Brasil afora, dirijo uma entidade não Governamental, atuo como assessor do Instituto Munduruku, no Mato Grosso; coordeno o Núcleo de Escritores e Artistas Indígenas, entre outras coisas.
7. Por que livros voltados às crianças? Você sente saudade da sua infância?
Um indígena não sente muita saudade. Nosso tempo é sempre o presente porque vivemos intensamente os momentos anteriores. É claro que as vezes sinto saudades ou nostalgia do tempo de criança, mas sei que preciso viver o agora. É nesta direção que vão meus livros. Eles refletem sobre o tempo mostrando que para tudo tem um tempo mítico e pessoal que nos torna senhores da nossa vida. Eu não creio no futuro. Futuro é um tempo que ainda não chegou. Sou fascinado pelo presente. É para esta criança de hoje que escrevo desejando que ela se torne um adulto inquieto e bem resolvido.
8. Gostaria que você me contasse sobre sua convivência com o Avô Apolinário?
Já tive a oportunidade de contar sobre isso em um livro que foi premiado pela Unesco, em 2004. o livro se chama “Meu Vô Apolinário – um mergulho no rio da (minha) Memória. Ali eu conto como foi minha convivência nascida, sobretudo, a partir do momento em que eu havia sofrido uma grande decepção com a minha própria condição de índio. É um relato muito verdadeiro e sugiro aos leitores que me encontrem ali.
9. Quando foi e como foi os primeiros contatos que você teve com a civilização ocidental? Queria que você me contasse sobre a sua transição para a cidade! Tem algum causo... As curiosidades...
Sou nascido em Belém do Pará. Desde criança tive contato com a “civilização”, mas cresci numa aldeia (que também conto no livro citado acima) num município paraense. Cresci como crescem os indígenas e aprendi coisas do nosso povo. Meu corpo foi vitima dessa educação tradicional que muito me orgulha. Minha mente, no entanto, se alimentou também da filosofia ocidental. Esse encontro de culturas certamente é responsável por tudo aquilo que sou hoje.
10. E hoje, com todas as suas andanças pelo país, quais coisas ainda te aborrecem na vida da cidade?
Poucas coisas. Na verdade tem algumas que não entendo direito como: por que as pessoas têm que fazer filas o tempo todo? Por que tudo tem que ser gerenciado por um banco? Por que as pessoas acham que são melhores que outras? Por que tanta burocracia para confiar em outra pessoa? Por que as pessoas não cumprem a palavra dada? Por que as pessoas são tão solitárias?
11. E o que você observa de bom? O que você acha que aprendeu no cotidiano da cidade. Aprendi que todas as pessoas são sujeitos de direito. Que em cada pessoa humana cabe um universo inteiro. Isso me leva a uma postura de tolerância e respeito aos caminhos de cada individuo. Isso só é possível ser observado quando percebemos que as pessoas não são iguais e não são tratadas com a mesma dignidade. O direito é algo louco porque ele parte do principio de que as pessoas são desiguais. Se fosse o contrário não haveria necessidade do direito. Isso é algo incompreensível para o indígena acostumado à liberdade.


12. Com o advento da internet, quais dificuldades você teve para se adaptar nessa cyber-sociedade, e que dificuldades você acha que hoje os índios encontram?
A internet é para mim uma flecha lançada com uma velocidade supersônica. Se for lançada com agilidade e certeza, ela irá atingir seu alvo. Preciso e devo me comunicar utilizando este instrumental. É uma forma de manter-nos vivos, pois assim nos fazemos conhecidos. Hoje me confesso um escravo da internet e acredito que nossa gente também precisa manipular este instrumental como condição para sua sobrevivência.
13. As editoras têm reparado com carinho para a literatura indígena, ou ainda é difícil publicar livros?
Sim. Há uma demanda maior e as editoras estão muito interessadas na temática. Isso acontece, também, porque o governo tem adquirido muitas obras de autoria indígena e o mercado percebe que há aí um produto que pode render bons dividendos. As editoras não nos publicam como uma ação social, mas por saberem que podem vender o que publicamos. Claro que buscamos qualidade e é por isso que criamos um selo para atestar esta qualidade para a sociedade brasileira.
14. Como você acha que o governo atual tem se comportado com as reivindicações para as áreas indígenas?
Todos os governos e governantes que passaram pelo Brasil nos últimos 507 anos acharam que a presença indígena é um estorvo. Afinal, que governo definiu e cumpriu uma política pública e consciente para os povos indígenas? Nenhum. Achamos que iria ser melhor agora. Não está sendo. Estamos sendo “colocados para escanteio”. Esse governo preferia que não existíssemos. Mas existimos e vamos continuar existindo.
15. Vi que você criticou o continuísmo do governo Lula... e o hoje, o que você espera de um governo ideal? Você acredita no caminho da reforma ou da revolução?
Estive em Cuba recentemente. Apoiado, aliás, pelo Ministério da Cultura através do programa de intercâmbio que ele mantém. Foi legal poder presenciar o que está ocorrendo por lá. Digo isso por causa da idéia de revolução que temos. O Brasil passou por uma revolução recentemente quando disse, através do voto, que acreditava na competência revolucionária de um torneiro mecânico. Achei que o torneiro mecânico fosse trazer uma chave inglesa para consertar o Brasil que foi concebido torto. Enganei-me. Preferiu manter a “tortura”. Credo em cruz. Isso é coisa de militar.


16. Li um artigo de um índio (também não me lembro o nome) em que ele dizia num belíssimo discurso que a civilização ocidental tem uma dívida enorme com os povos indígenas. Você compartilha dessa opinião? E se sim, qual o seria o mínimo que estado deveria pagar... Muita coisa é dita como recurso discursivo. Muitas pessoas falam coisas que não entendem, mas que causam um efeito bonito. Não acho que haja divida a ser paga. Acho que há um presente a ser mantido e aí sim há uma luta a ser travada. A história passada aconteceu à nossa revelia, mas a história de hoje a escrevemos nós, com sangue se preciso for.
17. Acabou de sair o documentário do jornalista Washington de Novaes “Xingu – A terra ameaçada”. Você acha que no geral o contato dos índios com os brancos é uma ameaça para a cultura tupiniquim sobreviver? Se você se refere à cultura dos indígenas Tupiniquim do Espírito Santo, diria que sim. Se se refere à cultura brasileira, eu perguntaria: quem se importa?
Darcy Ribeiro já disse com mais competência que eu que o Brasil nasceu da violência dos colonizadores. Ailton Krenak afirmou que o Brasil foi construído sobre um cemitério. Isso para mim resume tudo sobre este pernicioso encontro secular.
18. Em outra palestra, uma antropóloga (não lembro o nome) disse que é comum nas aldeias, quando cai a noite, algum grupo de índios escutar e dançar as músicas pop, sucessos da cultura de massa do país. Enquanto outros estão louvando as tradições folclóricas... A partir disso, você acha que, com essa via entrando nas aldeias, o índio está preparado para absorver essa cultura.. ela é maléfica ou saudável? Que futuro você acha que virá?Prefiro não fazer julgamentos. Os indígenas são capazes de responder com criatividade tudo o que absorvem das culturas alienígenas, tudo o que lhes é empurrado pela cultura majoritária. Tem sido assim desde muito tempo. A cultura é forte quando ela é capaz de recriar-se sempre. O pessoal de minha aldeia dança muito forró, brega, tecno-brega. Quando eu vou lá eu também danço. Mais tarde a gente dança nossas danças e cantamos nossos cantos. E vivemos felizes.
Por outro lado, os indígenas têm que ser responsáveis e fieis ao que acreditam. Isso é a garantia de continuidade. Mas cabem somente a elas darem esta resposta.
19. Você acha que ainda hoje os brancos estão se aproveitando da cultura indígena, ou índio já está esperto para que isso não ocorra. Tem algum exemplo?
Tem de tudo. O tempo de contato é que dá a resposta a esta pergunta. Há povos que têm contato muito antigo e já são espertos o suficiente para não cair no conto do vigário. Há outros que são mais recentes e estes ainda são enganados e muitas vezes perdem tudo o que possuem. Há indígenas, pessoas físicas, que enganam os parentes e ficam com a maior parte da riqueza. Tem os que vendem suas informações para grupos de madeireiros, fazendeiros, garimpeiros. Estes se corrompem ou são corrompidos pelo sistema nacional de corruptores (SNC), entidade invisível, mas sempre presente em todas as repartições públicas ou privadas desse amado país. Também do lado dos não-indígenas pessoas boas e pessoas mal intencionadas. Sei que é assim.
20. E por fim, o mesmo Washington Novaes em palestra disse que os índios têm muito a ensinar a civilização ocidental, e citou o exemplo de que os índios não protegem a informação para transformá-la em lucro... todos podem ter acesso a todo conhecimento. Quais outras grandes lições de vida que índio pode ensinar ao Brasil e ao mundo? Costumo dizer que a permanência teimosa dos indígenas no Brasil já é a grande lição. Somos povos historicamente espoliados, negados pelo sistema, maltratados, discriminados, desaparecidos da história. Temos sido tratados como indigentes, selvagens, atrasados, preguiçosos, entre outros adjetivos. Apesar disso, resistimos para mostrar nossa força, nossa verdade. Aos poucos vamos percebendo que a sociedade se solidariza mais com a gente e nos percebe homens e mulheres possuidores de uma rica experiência de vida. Talvez isso não sirva pra nada para o sistema capitalista devorador das diferenças, mas é muito importante para cada um de nós que acreditamos na vida nas suas mais diversas manifestações. Realmente não nos sentimos donos de nada, mas usuários de uma beleza que nos foi presenteada pelos espíritos criadores. Queremos gritar isso hoje para que as pessoas despertem sua consciência e possamos dar uma resposta positiva ao mundo que nos pede uma posição. Talvez isso seja a grande lição. Talvez.

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