Pular para o conteúdo principal

Religar-se: uma necessidade para os desligados.

Tendo estudado em escola religiosa me foram passados os ensinamentos que a dita religião considerava fundamental para tornar-me um ser humano melhor. Entre estes ensinamentos estava um que dizia que a humanidade foi vitimada por um pecado original que carregaria consigo até o fim dos tempos. O mal ocasionado por uma falha de caráter de um certo homem teria nos condenado a uma eterna busca pelo paraíso perdido. Mas dizia que não era para ficar tão mortificado por causa disso, pois o Criador não abandonaria suas criaturas e enviaria um redentor para fazer um novo pacto com a humanidade decrépita. Este salvador veio, andou por esta terra garantindo que era o filho do Criador, mas a maldade do homem o condenou a morte na cruz. No entanto, para que sua obra não fosse jamais esquecida e seus filhos, órfãos, deixou seus seguidores e uma instituição como legítima representante dos dons da divindade. Aprendi isso quando menino. Vivi isso quando jovem. Busquei compreensão quando adulto. Agora, caminhando para a velhice, descobri que as coisas não são bem assim. Fiz isso retornando para a infância quando se é livre da prisão que a cultura dominante e seus conceitos e preconceitos nos impõem. Um dia um padre me disse: “fora da igreja não há salvação”. Eu tinha onze anos de idade e alguma pureza interior. Acreditei, talvez por isso, nas palavras do homem santo. Homem feito, descobri que dentro dela também não há. Depois de ter caminhado por muitas trilhas voltei para a aldeia de meus pais e lá fui observar como viviam meus parentes. O pecado original não os afetou. Eles nunca precisaram de religião. Não se sentem culpados e ainda estão vivendo a harmonia do paraíso. Foi o que descobri. Descobri também que pecado e paraíso são frutos da cultura. Religião também o é. Ela serve para os que se deixam amedrontar por um fantasma chamado pecado e não percebem que o grande mal da humanidade foi distanciar-se de sua essência natural. No momento em que o ser humano colocou-se acima das outras coisas criadas decretou seu desligamento da teia da vida. Depois disso foi criando instituições para amenizar sua culpa correndo atrás de uma divindade que ele mesmo criou conforme sua imagem e semelhança. Embora não seja muito comum pensar nisso, creio que a redenção que o salvador trouxe foi relegada a umas poucas palavras esquecidas em partes poucas vezes lidas dos evangelhos. Entendo que quem precisa de religação é justamente quem está desconectado da harmonia do universo. Quem se sente completo e ligado, não precisa religar-se . Talvez tenha sido essa a novidade que os povos ancestrais tenham ensinado ao ocidente desde sempre. Foram eles que nos ensinaram que é preciso estar nu diante do universo para que vivamos sua essência. Este é um apelo a todos nós que tentamos complexificar a vida. Só assim podemos ser filhos.  

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A FORÇA DE UM APELIDO

A força de um apelido [Daniel Munduruku] O menino chegou à escola da cidade grande um pouco desajeitado. Vinha da zona rural e trazia em seu rosto a marca de sua gente da floresta. Vestia um uniforme que parecia um pouco apertado para seu corpanzil protuberante. Não estava nada confortável naquela roupa com a qual parecia não ter nenhuma intimidade. A escola era para ele algo estranho que ele tinha ouvido apenas falar. Havia sido obrigado a ir e ainda que argumentasse que não queria estudar, seus pais o convenceram dizendo que seria bom para ele. Acreditou nas palavras dos pais e se deixou levar pela certeza de dias melhores. Dias melhores virão, ele ouvira dizer muitas vezes. Ele duvidava disso. Teria que enfrentar o desafio de ir para a escola ainda que preferisse ficar em sua aldeia correndo, brincando, subindo nas árvores, coletando frutas ou plantando mandioca. O que ele poderia aprender ali? Os dias que antecederam o primeiro dia de aula foram os mais difíceis. Sobre s...

MINHA VÓ FOI PEGA A LAÇO

MINHA VÓ FOI PEGA A LAÇO Pode parecer estranho, mas já ouvi tantas vezes esta afirmação que já até me acostumei a ela. Em quase todos os lugares onde chego alguém vem logo afirmando isso. É como uma senha para se aproximar de mim ou tentar criar um elo de comunicação comigo. Quase sempre fico sem ter o que dizer à pessoa que chega dessa maneira. É que eu acho bem estranho que alguém use este recurso de forma consciente acreditando que é algo digno ter uma avó que foi pega a laço por quem quer que seja. - Você sabia que eu também tenho um pezinho na aldeia? – ele diz. - Todo brasileiro legítimo – tirando os que são filhos de pais estrangeiros que moram no Brasil – tem um pé na aldeia e outro na senzala – eu digo brincando. - Eu tenho sangue índio na minha veia porque meu pai conta que sua mãe, minha avó, era uma “bugre” legítima – ele diz tentando me causar reação. - Verdade? – ironizo para descontrair. - Ele diz que meu avô era um desbravador do sertão e que um dia topou...

HOJE ACORDEI BEIJA FLOR

(Daniel Munduruku) Hoje  vi um  beija   flor  assentado no batente de minha janela. Ele riu para mim com suas asas a mil. Pensei nas palavras de minha avó: “ Beija - flor  é bicho que liga o mundo de cá com o mundo de lá. É mensageiro das notícias dos céus. Aquele-que-tudo-pode fez deles seres ligeiros para que pudessem levar notícias para seus escolhidos. Quando a gente dorme pra sempre, acorda  beija - flor .” Foto Antonio Carlos Ferreira Banavita Achava vovó estranha quando assim falava. Parecia que não pensava direito! Mamãe diz que é por causa da idade. Vovó já está doente faz tempo. Mas eu sempre achei bonito o jeito dela contar histórias. Diz coisas bonitas, de tempos antigos. Eu gostava de ficar ouvindo. Ela sempre começava assim: “Tininha, há um mundo dentro da gente. Esse mundo sai quando a gente abre o coração”...e contava coisas que ela tinha vivido...e contava coisas de papai e mamãe...e contava coisas de  hoje ...