VENDENDO “CHOPP”, ACUMULANDO SONHOS
[ Mais uma crônica da Série "Memórias a Granel"]
Minha
família era pobre, já disse. Meu pai trabalhava como carpinteiro em muitas
obras para poder sustentar tantas bocas num lugar que não era nosso. Todos os
irmãos antes de mim, com exceção de um, eram meninas. Nessa época, meninas não
trabalhavam. Meu irmão mais velho e eu tínhamos que ajudar em casa com o que
fosse possível.
Meu
pai era um profissional bastante requisitado, mas não tão valorizado
financeiramente. Muitas vezes teve que viajar para lugares mais distante de
nossa cidade para poder ganhar um pouco mais de dinheiro para nos sustentar.
Suas longas ausências de casa deixava minha mãe solitária e com muito mais
trabalho a realizar. Minhas irmãs, eram quatro, ajudavam no que podiam,
sobretudo no trabalho caseiro como cuidar da casa, cuidar dos irmãos mais
novos, lavar roupa, etc. E ainda tinham que ir para a escola, coisa que meus
pais prezavam muito.
Mamãe
teve que “se virar nos trinta”, como se diz. Trabalhadora, nunca deixou “a
peteca cair”, também como se diz. Lavou roupa para outras pessoas, fazia
docinhos para vender na porta de casa, tornou-se mestra na arte de fazer e
vender tacacá no final do dia em frente de casa. Tacacá é uma bebida quente
preparada com vários ingredientes e é muito apreciada pelos paraenses. Ela
preparava também algumas coisas mais simples que pudessem nos entregar para
garantirmos alguns trocados no final do dia.
Uma
das coisas que ela preparava eram sacolas confeccionados a partir de sacos de
cimento jogados fora nas obras de construção civil para que pudéssemos vender
nas feiras livres. Eles eram preparados de maneira artesanal e que davam um
trabalho danado fazer. Eram resistentes, ecológicos e práticos. Nas feiras
livres haviam muitos vendedores desse material. Eu era um deles. Levava uma
grande quantidade desses sacos para vender para as pessoas que não tinham
sacolas em mãos. Eu os oferecia a elas que pagavam um valor por eles. No final
do dia, normalmente aos sábados, eu tinha algum dinheiro para levar para casa.
No final da feira conseguia um pouco de produtos que eram desprezados pelos
feirantes: bananas, verduras, legumes, hortaliças. Eram produtos que
garantiriam uma boa sopa no final do domingo.
Aos
domingos eu saia vendendo chopp. Esse é suco congelado revestido por saquinho e
que sempre faz um grande sucesso sobretudo aos finais de semana quando a
rapaziada se reunia para jogar futebol. Minha mãe fazia um chopp maravilhoso e
que era um sucesso entre os jogadores. Vendia uns cinquenta a cada domingo.
Entre um jogo e outro, muitos atletas vinham tomar o chopp de dona Maria. Eu
ficava feliz, mas acontecia que as vezes também era enganado e não poucas vezes
cheguei em casa com menos dinheiro no bolso. Minha mãe me xingava, mas entendia
que eu era apenas um menino.
Além
dos suquinhos envelopados em sacos plásticos, durante a semana eu ia para as
portas das escolas vizinhas a minha casa com um tabuleiro onde eu vendia
amendoim torrado, paçoquinha, menta e outras coisinhas que agradavam alunos no
intervalo da escola. E olha que eu não tinha mais que nove anos quando isso
estava acontecendo. Como e disse antes, fazia isso para ajudar em casa porque
nossa família era pobre aos olhos do sistema econômico que vivia nos lembrando
que para viver na cidade a gente precisava de dinheiro. Como éramos muitos,
precisávamos de mais dinheiro para comprar alimento. Na cidade não há natureza,
apenas egoísmos e disputas. Eu via meus pais no maior sacrifício para nos dar o
mínimo de estrutura para vivermos. Eu me sentia na obrigação de ajudar por ser o
segundo filho homem da casa. Era assim que eu tinha aprendido. Era isso que meu
pai me ensinava sobre responsabilidade e
sobre família. Por isso, enquanto vendia os chopps, salgados, docinhos e tudo
mais, eu ia aprendendo um jeito de
compreender o mundo que a gente vivia. Não era nada fácil, mas isso me
garantiu poder estudar, trabalhar e acreditar em dias melhores. Entre dores,
dificuldades, saudades da mata, vazios de significados, alegrias, conquistas,
vitorias, houve momentos de puro aprendizado aos quais agradeço e sinto que
isso forjou a pessoa que sou hoje e que posso ter a certeza de que valeu a pena
ter passado por tudo aquilo, pois isso me ajudou e me ensinou a olhar o mundo
da cidade de uma maneira diferente e me permitiu compreender muitas coisas,
inclusive a incompreensão que as pessoas têm dos povos tradicionais do nosso
país. Tem coisas que a gente só aprende com a dor, com o sofrimento. Eu posso
dizer, hoje, que sou filho do sofrimento. Isso não me deixou vazio. Ao
contrário, me encheu de sonhos.
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